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DORIVAL CAYMMI

por Antonio Marcelo Jackson




Nascido em Salvador, Bahia, em 1914, segue o curso esperado até os 16 anos quando abandona os estudos e passa a trabalhar no jornal O Imparcial. Em sequência, aprende violão com seu pai, Durval Henrique, e seu tio Cici, a tal ponto que em 1934 já participa de programas na rádio Clube da Bahia.

Vida que segue, venceu concurso de música em 1936 e em 4 de abril de 1938 desembarcava no Rio de Janeiro para trabalhar como desenhista numa agência de publicidade. Sim, Caymmi é mais dos compositores e cantores brasileiros que também se desenvolveu nas artes plásticas.

O fato é que em pouco tempo já freqüentava o famoso Café Nice, ponto de encontro de inúmeros músicos e artistas, e em breve se apresentava em um programa de rádio de ninguém menos que Lamartine Babo.

Aqui jê é necessária uma primeira observação. De acordo com Stella Caymmi, neta e biógrafa, a audição das canções do velho baiano não era de fácil assimilação. Caymmi criara o hábito e que manteria até o fim em alterar a afinação do violão provocando inevitavelmente alterações nas harmonias que tocava. Em depoimento, disse que tudo era instintivo, de orelhada, conforme dizia, desenvolvendo inúmeras vezes até mesmo a inversão dos acordes.

Para quem não entende de música, vamos a um exemplo bem simples. Quando alguém toca no violão um acorde de Dó Maior e faz isso de forma dedilhada (tocando cada corda separadamente), as notas que são ouvidas são Dó, Sol, Dó, Mi. Mesmo que você não saiba como isso ocorre, o ouvido processa as notas e chega ao resultado final. Caymmi invertia isso. Alterando a afinação do violão, podia dedilhar, num exemplo hipotético, a ordem Sol, Sol, Dó, Mi. O resultado continua sendo o acorde de Dó Maior, só que com a ordem das notas modificada. O ouvido humano entende o resultado, mas conscientemente percebemos que há algo distinto no processamento de tudo.

É essa estranheza que Lamartine Babo nota de imediato, ainda que reconheça a qualidade do artista. Desnecessário citar a voz de Caymmi, um de nossos maiores intérpretes de todos os tempos.

Na sequência, consegue contrato na Rádio Tupi e alguns meses depois teria eu famoso encontro com Carmen Miranda e sua música “O que é que a baiana tem?” gravada pela artista para o filme “Banana da Terra”.

E tudo foi absolutamente meteórico com o compositor baiano. Conforme escreve Stella Caymmi, em junho era da Tupi, em agosto transitava pela Transmissora do Rio de Janeiro e em novembro assinava contrato com a já poderosa – ainda que não estivesse estatizada – Rádio Nacional.

E destacar seu sucesso não é pouca coisa. Não custa lembrar que Dorival aparece no cenário musical em 1938, disputando espaço com artistas que vinham desde a segunda década do século XX, como Donga, Pixinguinha e João da Baiana; convivia com Ismael Silva, Ary Barroso, Lamartine Babo, Braguinha, Almirante, Bide, Marçal. De todos, apenas na tivera chance de ouvir pessoalmente Sinhô e Noel Rosa. Assim, admitir um sucesso quase que da noite para o dia e com toda a estranheza no som de seu violão é reconhecer a genialidade do artista.

Ora classificado como cantor de folclore, ora como sambista, Caymmi realiza sua primeira excursão pelo Brasil em 1941e chega a participar como ator em filmes. E  não bastasse o sucesso que não cessava de “O que é que a baiana tem?”, lança “O Mar”, “Abaeté”, e em 1943, uma de suas músicas mais conhecidas: “Acalanto”, feita para sua filha que nascera em 1941: Dinair, é seu nome, ou simplesmente Nana Caymmi.

Se fôssemos listar aqui os sucessos de Dorival, nosso programa não encerraria. Vamos ouvir um trecho de um dos maiores. Na interpretação do próprio e tema de filme norte-americano com Carmen Miranda, a clássica “Você já foi a Bahia?”.

Na década 1950, quando as grandes orquestras conquistaram o cenário e a música caribenha – notadamente a cubana – fazia enorme sucesso, o compositor baiano não se distancia em momento algum. Demonstrando enorme versatilidade, transita sem esforço pelo chamado samba-canção e mais uma vez produz gigantescos sucessos. É dessa época uma de suas mais belas composições, aqui interpretada na inesquecível voz de Dick Farney: “Sábado em Copacabana”. Vamos a um trecho.

É sem dúvida o final da década de 1950 que surge o maior dos desafios para todos os compositores que vinham desde o final dos anos 20. O advento da Bossa Nova passava como que uma tabula rasa na música brasileira e a revolucionaria de forma arrebatadora. O que nos interessa aqui, lembrando sempre que todas as personagens envolvidas com essa revolução da música afirmam se tratar de uma nova forma de samba, é identificarmos no primeiro e mitológico disco de João Gilberto, o long-play Chega de Saudade, de 1959, a presença de apenas quatro músicas fora do espectro bossanovista e, dentre elas, uma composição de Caymmi. Somando-se a isso, na capa do disco aparecia um texto de Tom Jobim informando uma série de coisas sobre o jovem artista e que Dorival aprovava tudo aquilo. Vamos a um trecho da gravação extraordinário do “Bruxo de Juazeiro” para “Rosa Morena”.

No final, pode-se dizer que a vida sorriu em praticamente todos os momentos para o compositor baiano. De sua aparição para a música até seu falecimento aos 94 anos, em 2008, jamais deixou de ser reverenciado. Sem dúvida, um dos maiores artistas de todos os tempos.

Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.






ASSIS VALENTE

por Antonio Marcelo Jackson




Nascido na Bahia e com infância bastante conturbada, estudou no Liceu de Artes e Ofícios de Salvador e tornou-se especialista em prótese dentária. Em 1927 José de Assis Valente chegou ao Rio de Janeiro e pela inteligência e habilidade apurada rapidamente conseguiu emprego como protético e em pouco tempo, conforme atesta seu biógrafo Gonçalo Júnior, abriu em sociedade com José de Aguiar Dantas um pequeno laboratório no Largo da Carioca.

Contudo, paralelamente às suas atividades vinculadas à odontologia, iniciava também sua vida como compositor e sonhava ver alguma música sua gravada. Tal desejo se intensificou a partir de 1931 quando conhece e passa a frequentar a casa de Heitor dos Prazeres, onde se torna amigo de Noel Rosa e alimenta a esperança, posteriormente concretizada, de conhecer também Araci Cortês que será a primeira  agravar uma música sua: o samba “Tem francesa no Morro”, gravado em 1932.

No ano seguinte, na noite de natal quando morava em um modesto quarto na Praia de Icaraí, em Niterói, e estava sozinho, compôs uma de suas obras-primas, “Boas Festas”, que é considerada a música verdadeiramente natalina brasileira. Vamos ouvir um trecho na interpretação intimista de Maria Bethânia.

A contar desse ano Assis Valente teve inúmeras músicas gravadas pelos mais diversos artistas. Fosse Carlos Galhardo (o primeiro a gravar “Boas Festas”), passando por Francisco Alves e principalmente Carmen Miranda, seu nome era figura fácil. Vale dizer que apenas a “Pequena Notável” gravou 25 sambas seus entre 1933 e 1940. Mas, nem sempre esse sucesso aparecia de forma tranqüila. Para o caso de “Camisa Listrada”, feita especialmente para Carmen gravar, ficou em primeiro lugar em um concurso promovido pela prefeitura do Distrito Federal, porém, o resultado foi anulado em virtude da notícia de que o presidente que deveria dirigir a apuração sequer tinha comparecido. Evidentemente isso gerou enorme frustração a Assis.

Em parte, segundo inúmeros registros, o compositor jamais conseguiu se libertar da infância sofrida. Fora criado por uma família que não era a sua e inúmeras vezes tratado somente como um empregado para todo serviço.

Essa melancolia que costurava sua existência tantas das vezes aparecia em suas letras, como no caso citado de “Boas Festas”. Pode-se dizer, aliás, que Assis Valente transitou em suas letras entre a crônica de costumes e a canção confessional, ou seja, tanto era capaz de descrever uma cena vivida pela sociedade de então, como na inesquecível “E o Mundo não se Acabou”, como poderia imprimir nos versos a tristeza que o acompanharia até o final. Para Ricardo Cravo Albin, o compositor foi o “primeiro baiano que se transformou em carioca de alma” enquanto que, tragicamente, não se desprendidas de suas marcas primárias.

Vamos a um exemplo do cronista. Na interpretação de Leci Brandão, “Camisa Listrada”.

E, no outro extremo, a bela e melancólica “Cai, Cai, Balão”, na interpretação de Aurora Miranda e Francisco Alves.

No apogeu de sua carreira, os jornais do Rio de Janeiro estamparam uma notícia chocante: Valente tentara suicídio atirando-se do Morro do Corcovado. Por um mero acaso, ficou preso em um galho de árvore e foi socorrido pelo corpo de bombeiros.

A partir desse ocorrido sua carreira quase que parou. Mesmo que vez por outra conseguisse alguém para gravar uma de suas canções, me nada se parecia com o que fora na segunda metade da década de 1930.

Alguns anos depois vem à baila novo escândalo. A atriz e vedete Elvira Pagã foi cobrar-lhe uma dívida de 4 mil cruzeiros e Assis não suportou o vexame: com uma lâmina de barbear tentou pela segunda vez o suicídio e novamente o destino deu-lhe uma chance.

Nos anos seguintes, na década de 1950, vivia exclusivamente de seu laboratório de prótese dentária e sua vida financeira ia água abaixo. Inúmeras dívidas para sustentar o modesto laboratório e quase ninguém sabendo de sua existência como compositor.

Por essa época, no desespero, passou a simplesmente vender seus sambas sem mesmo sequer pedir que seu nome ficasse no registro. Inúmeras músicas passaram por nomes de outros!

Desesperado com os cobradores, no dia 10 de março de 1958 trabalhou algumas poucas horas no laboratório, dirigiu-se à Sociedade Arrecadadora de Direitos Autorais que tinha vínculo para se informar sobre possíveis rendimentos e seu nervosismo era tanto que Joubert de Carvalho, diretor da entidade, aplicou-lhe um sedativo. Às 17 e 30 ligou em sequência para Vicente Vitale, seu editor, e para o embaixador Pascoal Carlos Magno, seu amigo, informando aos dois que pretendia se matar. Vinte e cinco minutos depois foi encontrado caído na Praia do Russel, na região da Gloria, com poucos pertences e um frasco contendo guaraná com formicida.

Se o trágico compôs o derradeiro ato na vida de Assis Valente, ao menos inúmeras de suas músicas ainda hoje alimentam nossa esperança.

Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.







CARMEN MIRANDA

A PEQUENA NOTÁVEL

por Antonio Marcelo Jackson





Nascida numa aldeia próxima a cidade do Porto, em Portugal, no ano de 1909, Maria do Carmo Miranda da Cunha, ou simplesmente, Carmen Miranda, vem com a família para o Brasil quando tinha apenas 18 meses de idade, o que naturalmente fará com que sua identidade cultural seja absolutamente brasileira.

Inicialmente moraram na Rua da Candelária e em pouco tempo estavam na Rua Joaquim Silva, na Lapa. Com uma pequena melhora nas condições financeiras, abrem uma pensão na Travessa do Comércio e ali Carmen irá crescer. Aliás, essa residência existe até hoje e fica na região conhecida como Arco do Teles, na Praça XV. Cose o destino conspirasse, a pensão era frequentada por músicos como Pixinguinha, Donga, China, entre outros, por uma boa refeição a preços mais em conta.

Aos quinze anos consegue seu primeiro emprego como balconista numa loja feminina onde uma de suas atividades era confeccionar chapéus – uma de suas marcas registradas.

De acordo com o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, inicia sua carreira em 1928 em um festival no Instituto Nacional de Música acompanhando o violonista Josué de Barros. Até esse momento era a jovem cantora Maria do Carmo. No ano seguinte, em uma apresentação na Rádio Sociedade, foi anunciada como Carmen Miranda e no final do ano já estava gravando seu primeiro disco. Ainda nesse mesmo ano de 1929, a poderosa RCA Victor a contratou, vislumbrando sua potencialidade.

Não é à toa que em 1930 já dividia o palco com ninguém menos que Francisco Alves e em julho estreava show solo no Teatro Lírico. Lançando discos pela RCA, no final desse ano conhece seu primeiro inquestionável sucesso: de Joubert de Carvalho a marchinha “Taí (pra você gostar de mim)” que simplesmente bateu 35 mil cópias vendidas – algo simplesmente inimaginável até então. Vamos ouvir um trecho dessa obra inesquecível.

Em 1931 partiu em turnê pelo Brasil e Argentina na companhia de Francisco Alves, Mário Reis, Luperce Miranda, entre outros, e na volta trabalhou um certo tempo na Rádio Mayrink Veiga e fechou um vultoso contrato com a Rádio Tupi. Apenas para lembrar, esse era um tempo em que os artistas eram contratados das rádios.

Os sucessos não paravam e a lista de gravações por ano aumentava. Em 1932 conhece o autor que lhe fornecerá inúmeros sucessos, o baiano Assis Valente, e em sequência terá contato e gravará Ary Barros, Lamartine Babo, João de Barro, entre tantos outros. Como curiosidade, essa lista terá dois destaques: uma única vez gravará um samba de Cartola (“Tenho um Novo Amor”) e também uma única obra de Noel Rosa, em parceria com Hervê Cordovil (“O que é que você fazia?”).

As turnês nacionais e internacionais se intensificavam. Chegou a mesmo a recusar um excelente contrato na Argentina onde possuía uma legião de fãs, dentre os quais ninguém menos que a futura primeira-dama Eva Perón. Isso para não falarmos dos sucessos que são inseridos em qualquer relação das maiores músicas brasileiras de todos os tempos e que tiveram em Carmen Miranda sua primeira voz. “Na Baixa do Sapateiro”, de Ary Barroso, “Camisa Listrada”, de Assis Valente, “Balance”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, “Cantoras do Rádio”, de João de Barro, Alberto Ribeiro e Lamartine Babo, entre tantas.

Em 1938, num show no Cassino da Urca, o ator norte-americano Tyrone Power entusiasma-se pelo seu talento e divulga seu trabalho nos Estados Unidos. No ano seguinte três fatos marcantes na sua carreira. Primeiro, em um show aberto na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 200 mil pessoas aplaudem Carmen numa apresentação memorável; é vista pelo empresário Lee Schubert e assina contrato para uma temporada na Broadway; por fim, o acaso fará com que conheça Dorival Caymmi e adquira definitivamente seus trejeitos de baiana. Na gravação do filme “Banana da Terra” estavam previstos os registros de duas canções de Ary Barroso anteriormente gravadas por Carmen (“Na Baixa do Sapateiro” e “Boneca de Piche”). Contudo, o compositor mineiro exigiu um alto preço pela inclusão das músicas e foi riscado da película. Sem ter escolha quanto a temática baiana prevista para o filme, o diretor solicitou a ela que encontrasse outro compositor disposto e com músicas sobre o assunto. Ela então lembrou-se de um jovem que conhecera pouco tempos antes e lhe mostrara uma canção que falava da Bahia: era Caymmi e a música “O que é que a baiana tem?”. No áudio fez dueto com o autor e no filme aparece com o Bando da Lua. Vestida com trajes típicos de Salvador, Carmen apenas cantava a música e pouco se movimentava. Dorival, então, sugeriu que ela indicasse com as mãos cada parte que a letra dizia e assim surgiram os gestos que seriam eternos no imaginário mundial. Vamos ouvir um trecho desse inesquecível samba.

Seu sucesso na Broadway se prolongou por quase um ano. Ao retornar em 1940 para um show no Cassino da Urca, a escolha do repertório, conforme atesta Ruy Castro, fez com que fosse recebida com frieza pelo público. A resposta não tardou. Em dois meses Carmen apresentava o samba inesquecível de Luiz Peixoto e Vicente Paiva, “Disseram que eu voltei americanizada”.

Voltava aos Estados Unidos e superando a barreira da língua, passou a ser constante em filmes de Hollywood, a tal ponto que em 1941 deixava na famosa “Calçada da Fama”, no Teatro Chinês em Los Angeles. No ano de 1945 o Tesouro Norte-Americano indicava que ela era a artista mais bem paga dos Estados Unidos e em 1948 fez sua primeira excursão pela Europa. Carmem transformara-se no que poderíamos chamar da “primeira pop-star” mundial.

Mas, seu ritmo de trabalho era alucinante. Em 1954 teve um colapso nervoso e passou algum tempo internada. Vivia a base de medicamentos e lamentavelmente não diminuía o número de apresentações. Em 5 de agosto foi encontrada desfalecida em seu quarto. Carmen Miranda tinha somente 46 anos de idade.

Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.







WILSON BAPTISTA


por Antonio Marcelo Jackson




Nascido em Campos dos Goytacazes em 1913, Wilson Baptista de Oliveira demonstrou desde cedo gosto e aptidão pela música, ainda que, no final das contas, não tenha aprendido a tocar instrumento algum.

Acompanhava seu tio que era maestro de uma banda na cidade natal e chegou a tocar triângulo ou mesmo se virava no pandeiro e no tamborim, conforme atesta o pesquisador Rodrigo Alzuguir, sem que isso o classificasse como percussionista. Tinha ritmo, sem dúvida, e deixava claro isso ao tocar caixa de fósforos ou mesmo apresentar-se com enorme afinação até o fim de seus dias. Aliás, sua voz, apesar de pequena extensão, impressionava por ser bastante melodiosa.

Quanto aos estudos pouco fez. Conforme o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, foi matriculado no Instituto de Artes e Ofícios de Campos no curso de marcenaria, mas não completou. Com dificuldades assinava seu nome e ainda mais conseguia ler. Curiosamente, isso não o impedia de produzir letras de músicas extraordinárias e às vezes, mesmo, alguns poemas.

Em 1929 mudou-se sozinho de mala e cuia para o Rio de Janeiro acreditando que conseguiria conquistar espaço entre aqueles que forneciam composições aos inúmeros cantores. Contudo, a sorte custava a lhe sorrir. Nas palavras de seu maior biógrafo, o pesquisador Rodrigo Alzuguir, vivendo há alguns anos no Rio de Janeiro pouco ou nada conseguira. E mesmo que vez por outra vendesse um samba, os rendimentos eram insignificantes.

Apenas para se ter uma idéia quanto a isso, de acordo com o autor citado, uma partitura vendida podia render ao compositor uns trezentos réis e um samba gravado num disco que conseguisse ter uma saída de umas mil unidades gerava uns 200 mil-réis ao artista. Para efeito de comparação, em qualquer botequim do Centro do Rio de Janeiro nessa época, um pedaço de bolo acompanhado de um cafezinho custava 200 réis e tal venda de mil discos permitia o pagamento de três meses de aluguel num barraco do Morro do Querosene, próximo ao Estácio. Não era grandes coisas, sem dúvida.

A sorte começou a mudar um pouco por obra meio que do acaso. Em 1933 finalmente conseguiu que um samba seu despontasse no cenário musical: tratava-se de “Lenço no Pescoço”, na gravação de Sílvio Caldas e que nos serve de música de fundo nesse episódio.

A letra era uma apologia à malandragem e chega mesmo a dizer que o narrador tem “orgulho de ser vadio”. Por razões que nem mesmo a razão conhece ninguém menos que Noel Rosa resolveu retrucar Wilson com o samba “Rapaz Folgado”, onde afirma “deixa de arrastar o seu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/ Tira do pescoço o lenço branco/ Bota sapato e gravata/ Joga fora essa navalha que te atrapalha”. Com isso tinha início a conhecida polêmica entre Noel Rosa e Wilson Baptista que rendeu diversas pérolas ao cancioneiro popular no Brasil e deu a Wilson Baptista a fama que tanto almejava. Apenas para registro, do lado de Noel surgiram sambas como “Palpite Infeliz” e “Feitiço da Vila”, clássicos da música brasileira.

Parecia, num dado momento, que a sorte finalmente conspirava a seu favor. Ainda que tivesse afinação, conforme disse anteriormente, não tinha pretensões para se afirmar como cantor e por isso abandonou uma turnê que fazia por diversos estados, chegando inclusive ao exterior, na Argentina.

Sozinho ou em parceria, notadamente com Ataulfo Alves, emplacou sucessos como “Acertei no Milhar”, na voz de Moreira da Silva, “Oh, seu Oscar”, com Cyro Monteiro, “Emília”, com Vassourinha, e experimentou a mão da censura no samba “O Bonde de São Januário”, que de mais uma letra fazendo apologia à malandragem, transformou-se por “sugestão” dos funcionários do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo de Getúlio Vargas, numa obra de homenagem ao trabalhador.

É dessa época uma de suas mais belas composições. Originalmente gravada por Orlando Silva e com inúmeras regravações, uma parceria com Henrique de Almeida o samba “Louco”. Vamos ouvir um trecho no registro magnífico de João Nogueira.

Se por um lado não podemos identificar nos aspectos rítmicos, melódicos ou harmônicos, alguma inovação, o que chama a atenção na obra de Wilson Baptista é o fato de suas letras terem se transformado em crônicas de costumes em alguns casos até mesmo superior a Noel Rosa.

É possível identificar nas letras de Baptista nuances que vão desde as relações amorosas, escapando de uma visão machista, passando pelos dilemas e esperanças do cotidiano, e nem mesmo uma de suas grandes paixões, o futebol e o time do Flamengo, escapam de uma visão em perspectiva. Num exemplo fantástico, tirou da derrota de seu time do coração uma narrativa do comportamento tradicional de um torcedor quando vê a derrota de seu adversário: apesar de não ter nada com o assunto, é capaz de fazer pilhéria com um amigo. Vamos a um trecho do samba “E o Juiz Apitou”, dele com Antônio Almeida, na interpretação de Chico Buarque.

No outro extremo, foi capaz de colocar mulher e homem em um mesmo patamar nas relações conjugais, surpreendendo numa época em que fundamentalmente todas as letras eram machistas. Desde “Oh, seu Oscar”, onde a mulher abandona tudo, até “Lealdade”, onde o homem reconhece a igualdade, há uma gigantesca surpresa em todas as coisas.

Apesar dessas inúmeras inovações, jamais abandonou a boemia. Teve dois filhos, mas não sustentou o casamento. Pouco se importava com a saúde e de acordo com o registro de Ricardo Cravo Albin, resistiu até o fim em dar um depoimento para o Museu da Imagem e do Som, lamentavelmente.

No dia 7 de julho de 1968, seu coração o traiu pela última vez.  Morria Wilson Baltista.

Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.







HEITOR DOS PRAZERES:
SAMBA E ARTE

por Antonio Marcelo Jackson






Nascido no Rio de Janeiro em 1898 e morador em sua infância na Cidade Nova, Heitor dos Prazeres era sobrinho de Hilário Jovino Ferreira, um dos criadores do carnaval do país, e frequentador desde sempre das casas de Tia Ciata e demais baianas da Praça Onze. Aliás, foi o tio que lhe deu de presente ainda na infância um cavaquinho que durante muito tempo seria sua marca registrada como músico.

Matriculado numa escola profissionalizante no curso de marcenaria, aos 12 anos, conforme nos informa o site heitordosprazeres.com.br, já se destaca também como músico (chamando a atenção de ninguém menos que Sinhô) e nos terreiros desenvolve a arte da percussão transformando-se num exímio ogã (que executa o ritmo nos atabaques).

Seguindo os passos do tio Hilário Jovino, o adolescente Heitor dos Prazeres estendeu suas participações em festas para além da Praça Onze, chegando a frequentar a casa de Dona Esther Maria Rodrigues, em Osvaldo Cruz, conhecida na região pelas comemorações que promovia em sua residência e que às vezes duravam dias. Nessas festas conheceu um jovem que seria seu amigo até o fim, além de parceiro em composições e em shows: seu nome era Paulo Benjamin de Oliveira, ou simplesmente Paulo da Portela.

Em fins da década de 1920 era amigo de Pixinguinha, Sinhô, João da Baiana, Paulo da Portela, Donga, Caninha, Cartola, Ismael Silva, Bide, Marçal, entre tantos outros, fazendo com que fosse participante ou testemunha de inúmeros acontecimentos na história do samba e da música brasileira.

Por essa época, como era membro do grupo do Largo do Estácio, ficou conhecido como Mano Heitor do Estácio e foi também o momento de sua famosa briga com Sinhô. Num dia, na Festa da Penha, ouviu Francisco Alves interpretar uma canção denominada “Cassino” cuja autoria foi inteiramente registrada para o nome de Sinhô. Transtornado com a informação, visto que a música teria sido composta em parceria, Heitor foi tirar satisfações com o mestre e ouviu dele a frase que ficaria famosa: “samba é que nem passarinho: a gente pega no ar”.

Muito mal-humorado com a resposta, Prazeres resolveu dar o troco; e, na época, inúmeras brigas eram resolvidas com música. Assim, Heitor compôs “Olha Ele, Cuidado” e Sinhô respondeu com “Segura o Boi”. Aproveitando o “título” de “rei do samba” que Sinhô possuía, Heitor dos Prazeres criou o “Rei dos Meus Sambas”, que provocou enorme ira em Sinhô a ponto de fazer com que tentasse impedir a gravação da música – em vão, diga-se de passagem.

Independentemente dos conflitos, a presença de Heitor dos Prazeres nos cenários musicais era intensa. De suas origens africanas apresenta o batuque “Vem Cá, Mucamba”, uma obra marcante.

Além de jamais se esquecer de suas matrizes, torna-se personagem singular na história do samba, pois participou da fundação da escola de samba Deixa Falar e Vizinha Faladeira (ambas no Estácio e com a parceira de Ismael Silva e demais bambas), Vai como Pode, que receberia mais à frente o nome de Portela e também contribuiu para o surgimento da Mangueira. É bem provavelmente caso único na história da música uma mesma personagem que se faz presente na construção de três ícones inquestionáveis da cultura popular de um país.

Aliás, sua parceria musical com Paulo da Portela o fez presenciar a ruptura deste com a escola que ajudou a fundar e que citei no episódio sobre Paulo Benjamin de Oliveira.

Em meados da década de 1930, Heitor tinha ficado viúvo há pouco tempo e morava num quarto modesto na Praça Tiradentes, Centro do rio de Janeiro. Além de músico e marceneiro, era também conhecido capoeirista e inúmeras vezes salvara amigos seus de confusões na rua graças a sua agilidade. Numa dessas bateu no seu quarto um de seus mais recentes amigos: o franzino e não menos folgado Noel Rosa. Pelo que se sabe, o Poeta da Vila tinha arrumado uma briga num bar com um marinheiro por causa de uma mulher e vendo que levaria uma surra, não teve dúvidas em procurar o parceiro para auxilia-lo. Heitor foi até o estabelecimento e resolveu a parada sem a necessidade de demonstrar suas habilidades, e no caminho de volta cantarolou ao amigo uma marchinha que estava criando. Noel ficou tão entusiasmado que alterou um dos versos e completou a letra; Heitor, por sua vez, gostou tanto da obra que poucos dias depois em seu quarto resolveu pintar um quadro retratando a personagem central da letra. Desse episódio nascia não apenas uma dos maiores sucessos da música brasileira, mas também despontava para o mundo o pintor Heitor dos Prazeres que, tempos depois, seria classificado como um dos maiores artistas plásticos da história das artes no Brasil. Na interpretação da dupla Joel e Gaúcho, gravação original de Pierrot Apaixonado.

Tempos depois foi laureado como prêmios na música e nas artes e nunca mais abandonou nenhuma das duas artes. Terceiro lugar entre artistas brasileiros na 1ª Bienal de Arte de São Paulo, em 1951, e homenageado com sala especial na 2ª Bienal em 1953, e no ano seguinte foi o autor dos cenários para o Balé do IV Centenário da cidade de São Paulo, conforme indica o site Arte Popular Brasil.

Manteve até o final um atelier no Centro do Rio de Janeiro. Se não fez fortuna, por um lado, foi afortunado por ser um dos artistas mais completos do Brasil no século XX.

Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.










GERALDO PEREIRA E O SAMBA SINCOPADO

por Antonio Marcelo Jackson







Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1918, Geraldo Theodoro Pereira mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1930, indo residir no Morro da Mangueira, onde foi amigo de infância de Buci Moreira e Pandeirinho, futuros sambistas, aluno de violão de ninguém menos que Cartola e era frequentador assíduo das rodas de samba de Alfredo Português, padrasto de Nelson Sargento.

Rodeado de sambistas, não demorou muito para que ele também se transformasse em um compositor desse gênero musical, ainda que não dispensasse uma carreira mais segura e que lhe desse sustento certo: com 18 anos aprendeu a dirigir e foi motorista de caminha da limpeza urbana do Rio de Janeiro até seu falecimento aos 37 anos em maio de 1955.

A importância de Geraldo Pereira para o samba e a música brasileira reside em dois aspectos centrais: de um lado, acompanhou a fórmula apresentada por Noel Rosa e teve nas letras de suas músicas belíssimos exemplos de crônicas de costumes. Já em sua primeira composição “oficial”, o samba “Farei Tudo”, em parceria com Fernando Pimenta em 1938, teve a letra censurada porque entenderam possuir versos por demais ousados para a época (o início diz “Eu lhe quero de verdade/ Pois tenho tanta vontade/ Você sabe de quê...”), conforme o  artigo de Luís Pimentel para o site Revista Música Brasileira.

Porém, esse insucesso inicial não embargou novas composições que demonstravam a verve de cronista do compositor mineiro. Tanto que em 1939 teve seu primeiro samba gravado pelo cantor Roberto Paiva e com elogios do arranjador do disco: ninguém menos que Pixinguinha.

Com o tempo conheceu Cyro Monteiro que tornou-se amigo e protetor de Geraldo Pereira e gravou canções que se tornaram gigantescos sucessos: “Você Está Sumindo”, a clássica “Falsa Baiana” inspirada na esposa do compositor Roberto Martins incapaz de sambar no carnaval com sua fantasia, conforme o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, “Pisei num Despacho”, com toque de humor único. Vamos ouvir um trecho na interpretação magnífica de Roberto Silva.

Somando-se a capacidade de cronista, o impacto produzido pelas obras de Geraldo Pereira principalmente a contar da gravação de “Falsa Baiana” reside no fato do compositor explorar ao máximo a síncope no ritmo e na linha melódica.

Toda linha melódica e rítmica divide-se em pulsações fortes e fracas. Para se compreender de forma simples, basta lembrarmos que podemos marcar uma música no bater palmas ou estalar dos dedos. Quando fazemos isso estamos marcando o tempo forte do ritmo. Uma síncope musical é quando prolongamos o som de uma pulsação fraca até chegar a pulsação forte seguinte.

O samba de Geraldo Pereira possui essa característica; e isso foi uma enorme novidade no cenário musical brasileiro. De fato todos os estudos indicam que a música no Brasil é nitidamente sincopada. Porém, o que o compositor mineiro fez foi elevar a enésima potência tal característica e mudar por completo o que se fazia até então.

Para além de “Falsa Baiana” e de “Pisei num Despacho”, outras obras ímpares podem ser facilmente listadas como sambas sincopados: “Escurinho”, “Escurinha”, “Cabritada Malsucedida”, “Você Está Sumindo”, “Sem Compromisso”, entre tantos outros clássicos da música brasileira aparecem sempre com a marca de Pereira.

A modernidade de suas obras torna-se nítida quando observamos que suas músicas não estacaram em um só momento, ou seja, mesmo após a sua morte em 1955 as gravações não pararam uma única vez.

Para além disso, essa modernidade também fica clara quando percebemos que a obra de Geraldo Pereira é a base do chamado “samba de gafieira”, em nítida oposição ao “paradigma do Estácio” e sem ser uma retomada do “paradigma da Praça Onze”. Assim, o compositor mineiro abre um “novo ramal” para o samba que, infelizmente, encontrou cantores dispostos a representa-lo, mas somente foi ter um seguidor na arte da composição décadas depois na obra gigantesca de João Nogueira.

Assim como também, a força e inovação de suas obras seria reconhecida por João Gilberto quando gravou em seu terceiro disco o samba “Bolinha de Papel”. Não custa lembrar que os critérios do “Bruxo de Juazeiro” para gravar alguma canção sempre foram absolutamente rígidos e que, seja no terceiro disco, seja nos dois anteriores, fora os compositores vinculados diretamente à bossa nova (Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, entre outros) apenas Dorival Caymmi,  Ary Barroso e Marino Pinto receberam o aval joãogilbertiano.

Nesse sentido, pode-se dizer que Geraldo Pereira pertence ao seleto grupo de compositores que transita sem qualquer transtorno entre as fórmulas clássicas do samba e da música brasileira e a revolução criada a contar da bossa nova.

Se o compositor juiz-forano marcou tremendamente o cenário musical brasileiro, o homem mineiro lamentavelmente não se permitiu a gentilezas ou convivências pacíficas. Trabalhou como ator em pelo menos três filmes, brigou com gravadoras por direitos autorais, foi um dos pivôs de uma pancadaria generalizada na boate Esplanada, em São Paulo, e por fim já com a saúde debilitada provocou sua derradeira briga com o famoso Madame Satã no Bar Capela, região da Lapa, no Rio de Janeiro. Quase como autobiografia, vamos ouvir um trecho de “Escurinho”, um de seus maiores sucessos, na interpretação de Cyro Monteiro.

Com isso encerro aqui. Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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NOEL ROSA, SEGUNDA PARTE

por Antonio Marcelo Jackson



A importância da obra de Noel Rosa para a música popular brasileira vincula-se a inúmeros fatores. O primeiro aspecto, conforme disse no episódio anterior, reside na forma como Noel interpretava suas músicas, a saber, reproduzindo a cadência de um tamborim. Mas, vale dizer, não de qualquer tamborim, mas de um tamborim que está ligado ao chamado “paradigma do Estácio”, na conhecida e já citada denominação do pesquisador Carlos Sandroni.

Em outras palavras, Noel Rosa transportava para o canto o ritmo criado por Ismael Silva e demais bambas da Cidade Nova. Era, sem dúvida, uma grande inovação. Diga-se de passagem, foi Ismael Silva seu parceiro musical mais constante com cerca de 18 músicas criadas pela dupla. Além disso, se a popularização do samba se deu com Francisco Alves e Mário reis, conforme abordei em episódio anterior, as criações de Noel ratificaram o “paradigma do Estácio” como sendo a derradeira versão do que seria um samba.

Um segundo aspecto envolve as ações do Poeta da Vila. Apesar de nascer em um bairro planejado e de classe média, jamais se furtou a frequentar, primeiro, o Largo do Estácio e, depois, o Morro da Mangueira e de outros inúmeros redutos da população negra e pobre do Rio de Janeiro. Com isso, Noel rompia a barreira que separava o universo urbano e oficial do mundo real da capital do país; transitava sem embargo por territórios como a zona do Mangue e seus inúmeros prostíbulos; virou grande amigo de Cartola e frequentemente dormia na casa do famoso compositor da Estação Primeira de Mangueira; era frequentador assíduo da Festa da Penha. Aliás, uma curiosidade: se alguns sambas de Noel são famosos por citar seu bairro de nascença e morada, a mitológica Vila Isabel, de outro lado o bairro que recebeu o maior número de homenagens em citações em suas composições foi nada mais, nada menos que a Penha.

Em outras palavras, Noel Rosa não seria definido como alguém que vez por outra fosse a essas regiões, mas sim, um sujeito que efetivamente frequentava os lugares e se relacionava com seus habitantes. A isso chama a atenção Carlos Sandroni, João Máximo e Carlos Didier, ao afirmarem em obras distintas essa prática cotidiana do autor.

Um terceiro aspecto da importância da obra do Poeta da Vila diz respeito às letras que fazia. Em geral as letras das músicas não possuíam a preocupação em apresentar uma narrativa completa sobre alguma coisa; funcionavam muito mais como recortes de diversos assuntos que se reuniam para dar memorização às melodias que as sustentavam. Com Noel Rosa a letra na música popular brasileira assume a função de crônica de costumes e quase que imediatamente influencia a todos os demais compositores. Aliás, isso é um fato que merece destaque. Com pouco tempo de carreira, seja no bando dos Tangarás, seja em discos solo, com pouco mais de vinte anos já era considerado um gênio por seus pares e parte significativa disso residia na qualidade de suas letras.

Sua capacidade de perceber o mundo a sua volta e transformar as observações em letras de música, pouco importando o tema, foi algo quase que uma criação sua. Em suas narrativas construídas é possível encontrarmos temas que se entrecruzam como amor, malandragem e estética noturna como em “Pela Décima Vez”; os cenários da cidade do Rio de Janeiro como na música que serve de fundo a este episódio, o samba “São Coisas Nossas”; o impacto no comportamento das pessoas a partir da inserção do som nas películas de cinema como na obra genial de “Não tem Tradução” e que merece ser citada: “O cinema falado é o grande culpado da transformação/ Dessa gente que sente que um barracão prende mais que um xadrez/ Lá no morro se eu fizer uma falseta/ A Risoleta desiste logo do francês e do inglês/ A gíria que o nosso morro criou/ Bem cedo a cidade aceitou e usou/ Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando um pinote/ Na gafieira dançando um foxtrot/ Essa gente hoje em dia que tem a mania de exibição/ Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês/ Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro/ Já passou de português/ Amor lá no morro é amor pra chuchu/ As rimas do samba não são “I love you”/ E esse negócio de alô, “alô, boy”, “alô, Johny”/ Só pode ser conversa de telefone”.

Uma obra genial em todos os aspectos! O sujeito comum que se impressiona com o cinema estrangeiro e começa a reproduzir as falas dos filmes; a certeza de que a nossa realidade não se coaduna que o modelo que vem do exterior; a própria transformação da língua nacional que, na voz de um malandro, faz com que o português se transforme em “brasileiro”. Noel Rosa, de fato, estava alguns passos à frente dos demais.

Contudo, se o brilhantismo de suas composições era inquestionável, sua saúde não acompanhava a criatividade. A qualidade de sua alimentação prejudicada pela vergonha que sentia em comer em público piorava com a substituição de um alimento corriqueiro pelo conhaque, cerveja e demais etílicos. Inúmeras vezes foi internado em hospitais; passou uma temporada internado em Barra do Piraí e chegou mesmo a passar uma temporada em Belo Horizonte acreditando seu médico e sua família que estaria afastado das noites em claro e dos amigos de boemia. A tuberculose detectada quando tinha 24 anos após um desmaio no final de uma apresentação no Cine Grajaú não deu trégua até o fim de sua vida com pouco mais de vinte e seis anos de idade.

Numa paráfrase ao que foi dito quando da morte do escritor José de Alencar, no século XIX, para qualquer pessoa e pouco importa a idade que tenha, a morte sempre chega cedo. Para Noel Rosa...ela chegou cedo demais.






NOEL ROSA, PRIMEIRA PARTE

por Antonio Marcelo Jackson





Nascido em 10 de dezembro de 1910 na rua Teodoro da Silva, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro teve um parto bem complicado. Puxado a fórceps e com hipoplasia (que é o desenvolvimento limitado da mandíbula), essa má-formação foi determinante em alguns aspectos em seu comportamento e, consequentemente, de sua saúde – como, por exemplo, dificuldade em se alimentar e mesmo vergonha de fazer isso em público.
Apesar dos pesares e de uma vida simples, espécie de classe média suburbana, Noel foi alfabetizado por sua mãe, professora e que transformava parte de sua casa em uma singela escola, e na segunda metade da década de 1920 foi matriculado no Colégio São Bento.
Demonstrando enorme capacidade de aprendizado, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro (embrião da atual UFRJ) em 1930, mas abandonou o curso em 1932. Em uma conhecida entrevista a um jornal carioca algum tempo depois, explicou o porquê da decisão: “prefiro ser um bom sambista do que um mal médico”.
Para o bem da verdade Noel Rosa se envolvera com a música desde cedo, quando aprendeu a tocar violão ainda na infância, e no final de sua adolescência quando no bairro em que morava reuniu-se a outros vizinhos, que se fizeram amigos até o fim, para formarem o Bando dos Tangarás, que tinha como princípio a não cobrança das apresentações para que não se profissionalizassem e não se envolvessem com uma carreira tão criticada, afinal. Do grupo, apenas para citar, estavam Henrique Foréis Domingues (muito mais conhecido pelo apelido Almirante) e Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha ou singelamente, o João de Barro.
O Bando dos Tangarás surge no cenário musical carioca dentro da enorme influência que a música nordestina exercia na Capital Federal da época. Aliás, conforme lembra Almirante, o próprio nome dava seguimento a outros grupos como os Turunas da Mauricéia, surgidos em Pernambuco em 1926, Turunas Pernambucanos, também no mesmo estado, entre tantos outros. De acordo com o Dicionário Cravo Albin, Gravaram de 1929 a 1933 63 discos, apesar de seu mote amadorístico, e a contar dessa data cada componente seguiu sua carreira. Frente a isso, pode-se dizer que Noel estava envolvido com música desde, pelo menos, 1928/29, ou seja, desde seus 18 anos.
Estudando no Colégio São Bento, localizado na Praça Mauá, bem próximo a Pedra do Sal, e posteriormente cursando medicina na Praia Vermelha, próximo a Botafogo, uma coisa era certa: para retorna a sua casa, em Vila Isabel, utilizando bem provavelmente os bondes, Noel Rosa obrigatoriamente passava pela região do Estácio.
Com seu gosto pela música, o grupo que ajudara a formar e a proximidade do bairro do Estácio, não levará muito tempo para que o compositor da Vila conhecesse e virasse amigo e parceiro de Ismael Silva; tanto que no já citado concurso promovido por Zé Espinguela no Engenho de Dentro e que já citei em episódio anterior, o samba que representava os bambas da Cidade Nova era uma parceria dos dois.
Esse contato resultou também em outras mudanças. Apesar de seu vínculo com os Tangaras e com a música nordestina, tanto que o primeiro registro musical de Noel Rosa é uma embolada – a canção Minha Viola -, nosso “poeta” enveredou-se rapidamente no universo do samba. Evidentemente, era o samba do paradigma do Estácio, como afirmou o pesquisador Carlos Sandroni.
Essa marca do Estácio no samba do compositor de Vila Isabel aparece logo em uma das primeiras gravações solo, sem a participação dos Tangarás, e essa música vale sua história.
Conforme os estudos de João Máximo e Carlos Didier, Noel não era apenas exímio violonista, mas também, tinha enorme gosto em solar inúmeras músicas, dentre elas, o Hino Nacional Brasileiro. Com 19 anos de idade resolveu fazer uma brincadeira: alterou o tempo de algumas notas do Hino, colocou-o em ritmo de samba e fez uma letra onde o tempo todo o narrador trata da falta de dinheiro. Por essa época, a expressão popular que significava estar sem nada no bolso era uma pergunta: “com que roupa?”. Fulano, vamos ao bar? “Com que roupa?”, o outro respondia.
Essa história foi confirmada a Máximo e Didier por um parente de Noel, acrescentando que o poeta chamava essa música entre os amigos mais íntimos não pelo título, mas sim, por um apelido que ele colocara: Brasil de tanga.
Com a música pronta, ofereceu-a aos Tangarás, que não se interessaram, e a outros cantores com o mesmo triste resultado. Sem escolha, tentou gravar sozinho no ano de 1929 e quase ninguém deu a mínima.
Sem grandes expectativas, vendeu os direitos autorais e por obra do acaso gravou o samba em fins de 1930. Na época as gravações não utilizavam instrumentos de percussão; mas, o interessante, e para isso nos chama a atenção Carlos Sandroni, o canto de Noel Rosa neste samba reproduz ritmicamente o deveria ser feito pelo tamborim. Em outras palavras, a música “Com que Roupa?” não era somente uma genial obra cuja letra pode ser classificada como crítica ou de protesto, mas também, possui em sua gravação o aspecto revolucionário de escapar em definitivo do bel canto de um Francisco Alves e demonstrar o ritmo presente do paradigma do Estácio.
Dito isto, vamos ouvi-la.
E aqui encerro esse nosso episódio. Aguardem a segunda parte e até o próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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POLÍTICA E SAMBA

por Antonio Marcelo Jackson




Em episódios anteriores tive a chance de citar as relações, as vezes turvas, tanto para o bem quanto para o mal, entre a cultura popular e as elites sociais, políticas e econômicas. Seja no encontro entre o presidente Wenceslau Brás com tia Ciata, na amizade entre João da Baiana e Pinheiro Machado, na institucionalização do racismo via Escola de Direito do Recife, passando pelo surgimento das escolas de samba e sua relação com a prefeitura do Distrito federal, há notadamente a demonstração de um cabo-de-guerra nas ações e reações entre a consolidação da cultura popular negra e mestiça e sua aceitação não necessariamente pacífica pelas instituições políticas e sociais.

Para o pesquisador Hermano Vianna, por exemplo, tal consolidação passou pela aceitação por parte de nossas elites intelectuais dos valores populares - principalmente após a Semana de Arte Moderna de 1922. Vianna defende que os artistas foram capturados positivamente pelos intelectuais modernistas que, por sua vez, tinham trânsito livre com as elites do país. Assim, quando os desdobramentos da Semana de 22 eram mais do que incensados no final da década de 1920 e início dos anos 30, foi também o momento em que a cultura popular ingressou de forma contundente nos salões das classes média e alta da sociedade brasileira. É claro que antes ocorreram contatos, como na famosa apresentação de Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete; mas tal fato gerou, quando muito, discursos raivosos no Senado ou na Câmara de Deputados. A contar dessa ação dos modernistas, de acordo com Vianna, a consolidação de fato ocorreu.

Já para a pesquisadora Letícia de Sousa Reis, a legitimação da cultura popular – e por conseqüência do samba – passa prioritariamente pelo processo de reconhecimento social do negro no Brasil, com destaque na atuação dos músicos populares nos mais diversos nichos abertos com início da chamada cultura de massa ou da ampliação dos meios de comunicação de massa, tais como as gravações de discos (primeiro mecânicas e depois elétricas, coisa que muito facilitou o surgimento de cantores), ampliação dos jornais e principalmente o surgimento do rádio.

Nesse sentido, conforme Reis, é que há destaque para o que ela chama de ambigüidade nas relações políticas e sociais. Assim, no mesmo momento em que as elites percebem a força da cultura popular notadamente pelo número de participantes de uma festividade, por outro busca-se institucionalizar o racismo por meio de leis que criminalizavam a cultura e a religiosidade afro-brasileiras. Para cada momento em que a chamada “base da pirâmide social” se impõe no cenário como um todo, há a reação de tentativa de se marginalizar os valores populares, e os exemplos são diversos: vão da capoeira ao maxixe, das danças aos instrumentos musicais. E a música, evidentemente, não escapará desse conflito.

Um bom exemplo é o que acontece com o grupo Oito Batutas. Formado em 1919 no Rio de Janeiro e tocando choros, lundus, maxixes, entre tantos outros ritmos populares, ganha fama e é admirado até mesmo por parte da elite carioca de então. Dentre seus admiradores estava o jovem Arnaldo Guinle que propõe financiar uma excursão do grupo por alguns estados brasileiros e mais à frente uma temporada em Paris, França.

Isso foi imperdoável para uma parte significativa da elite brasileira. No Diário de Pernambuco de primeiro de fevereiro de 1922, um jornalista “deplorava o fato de que fosse mostrado nos boulervards de Paris um Brasil pernóstico, negróide e ridículo”, conforme resgata a pesquisadora Letícia Reis.

No retorno ao Brasil, Guinle recepcionou os músicos no recém-inaugurado Copacabana Palace e quando Pixinguinha chegou na entrada do hotel, recebeu a seguinte informação: “preto entra pela porta dos fundos”.

Essa fala, fora dita pelo funcionário que, por sua vez, deve ter recebido instruções de seus superiores que, por fim, não tiraram isso da cartola: ouviram, com certeza, dos donos. O problema era que, naquele caso, o negro em questão era o homenageado. Humildemente, Pixinguinha dirigiu-se à porta dos fundos e quando a história veio à baila, Guinle obrigou o funcionário a pedir desculpas ao músico; e o funcionário não parava de repetir “eu lamento, senhor, eu lamento”. Essa cena lamentável foi a origem de uma das mais belas obras do cancioneiro mundial e que décadas depois receberia letra – ainda que não trate exatamente do ocorrido naquela noite. Para amenizar um pouco essa história triste, vamos ouvir “Lamento”, de Pixinguinha e Vinícius de Moraes na interpretação inesquecível do MPB4.

Esse exemplo demonstra a ambiguidade citada pela autora. De um lado havia a regra geral de que os negros deviam ser marginalizados; de outro, a aceitação de uma parte desses mesmos negros pela elite notadamente branca – ou que acreditava, e acredita, ser branca.

De qualquer modo, a presença dos Batutas, assim como também, de inúmeros outros artistas negros e mestiços ao longo daqueles anos 20 e na década de 1930, impunha novas formas de posicionamento dessas mesmas elites. Seguindo mais ou menos a máxima de Lampadusa, no livro “O Leopardo”, quando diz que “é necessário mudar alguma coisa para que tudo continue como está” – frase símbolo do pensamento conservador – aceitou-se paulatinamente a presença e mesmo domínio da cultura negra como legítima representante da cultura brasileira.

Porém, concomitantemente a isso, a exclusão de um contingente enorme de afro-descendentes das profissões que mais remuneram ainda continuaria e continua a se fazer presente.

De um lado, a vitória do samba é, sem dúvida, uma vitória política da cultura popular. Mas, a guerra em si ainda está longe de acabar.

Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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FRANCISCO ALVES E MÁRIO REIS:

A POPULARIZAÇÃO DO SAMBA

por Antonio Marcelo Jackson





Do final da década de 1920 e nos primeiros anos da década de 1930 os nomes de Francisco Alves e Mário Reis estiveram intimamente vinculados ao samba, tanto do paradigma da Praça Onze, quanto do paradigma do Estácio, isto porque, foram os principais intérpretes desses compositores que à época iniciavam suas carreiras.

Francisco Alves iniciou sua jornada em 1918 no Pavilhão do Méier e depois no Circo Spinelli. Porém, como a cidade do Rio passava pelo surto da “Gripe Espanhola”, a empresa se desfez e o cantor apenas retomou sua iniciante carreira em 1919, em Niterói, com o mesmo circo devidamente reorganizado.

Por uma dessas coincidências do destino, conhece João Gonzaga, filho da maestrina Chiquinha Gonzaga, que o apresenta a Sinhô e nesse mesmo ano lança seu primeiro disco com duas obras clássicas de José Barbosa de Oliveira: “O Pé de Anjo” (gozação de Sinhô a China, irmão de Pixinguinha, em sua vendeta musical com os baianos da Praça Onze) e “Fala, meu Louro”, outra gozação com o mesmo grupo.

Vale como curiosidade que na letra de “Fala, meu Louro” Sinhô escreve “a Bahia não dá mais coco pra fazer a tapioca, pra fazer um bom mingau e embrulhar o carioca”, assunto que voltaria mais tarde na clássica obra de Ary Barroso no “coqueiro que dá coco, oi onde amarro a minha rede”, já em uma outra Bahia, fora de qualquer disputa entre os diversos compositores de samba.

Mas, independentemente das pendengas entre os bantus cariocas e os iorubas e hauçás, Francisco Alves – ou Chico Viola, apelido que o marcaria para o resto da vida – transitava sem problemas pelos dois grupos, a tal ponto que por volta de 1928 conheceu uma nova turma que também buscava seu lugar ao sol: compositores e malandros do Estácio.

Segundo Humberto Franceschi, o primeiro contato entre Alves e os bambas do Estácio não chegou a ser tranqüilo. Em uma época em que não havia debate algum sobre os direitos autorais, uma das poucas formas de um compositor ganhar dinheiro era vender a parceria ou mesmo a autoria da música para aquele que iria cantar ou mesmo para alguém que, por ventura, tivesse recursos e interesse. No caso de Francisco Alves, este entendia que deveria ser “parceiro” dos autores, e à exceção de Sinhô, inúmeros grandes compositores aparecem na música brasileira tendo Chico Viola como parceiro: Ismael Silva, Noel Rosa, entre tantos.

Assim, Alves teve contato com Bide (o compositor Alcebíades Barcelos) e dele gravou o samba “A Malandragem”. O problema é que no selo do disco ao invés de aparecer Alcebíades Barcelos e Francisco Alves, como tinha sido combinado, apenas o nome do cantor estava impresso.

Evidentemente, os compositores do Estácio ficaram com “um pé atrás” em relação ao já famoso cantor e este, por sua vez, teve de cortar um dobrado para poder ingressar no grupo novamente.

De algum modo Francisco Alves conseguiu, e tanto isso é verdadeiro que pouco tempo depois seu nome grafado ao lado de Ismael Silva e Nilton Bastos na clássica “Se Você Jurar”.

Paralelamente a essas relações entre Chico Viola e os bambas do Estácio, Mário Reis iniciava em fins da década de 1920 sua carreira musical. Filho de empresários cariocas, Reis conheceu Sinhô e gravou em 1928 duas obras deste e, para riqueza de sua biografia, foi acompanhado pelos violões do próprio Sinhô e de Donga.

Iniciada a carreira e ainda que não precisasse dela para seu sustento – como era o caso de Alves -, Reis também passa a valorizar os compositores que circulavam pela noite e pela boemia carioca. E apesar de não possuir a extensão vocal de seu amigo, imprimiu uma nova forma de cantar que, de acordo com Tárik de Souza, citado pelo Dicionário Cravo Albin, criou um jeito “carioca de interpretar”: com malemolência, ginga, escapando do “bel canto” de Francisco Alves e de outros para valorizar as síncopes e modulações do samba. De certo modo, se bem observarmos a maneira pela qual Mário Reis grava teremos o embrião daquilo que será feito por João Gilberto décadas depois.

Uma forma de identificarmos essas distinção de Mário para Francisco é ouvirmos os dois cantando juntos. No caso aqui, um samba de Noel Rosa intitulado “É Preciso Discutir”. Vamos ouvi-lo.

Mário Reis também comprava os sambas; mas, ao contrário de Francisco Alves, não se importava em não aparecer como “parceiro”, contentando-se apenas em ter o lucro exclusivo das vendas dos discos. Foi ele, por exemplo, o primeiro a gravar um samba de Cartola que era conhecido de seu motorista.

No final, o que nos interessa é perceber o papel que ambos os intérpretes tiveram na música brasileira e mais particularmente no samba.

Primeiro por terem “descoberto” compositores que não muito tempo depois seriam classificados como fundamentais para a cultura brasileira.

O segundo aspecto vincula-se ao prestígio que ambos possuíam junto aos teatros e as iniciantes rádios para abrirem as portas a esses artistas. Não há dúvida que envergadura de Bide, Marçal, Ismael Silva, Nilton Bastos, Noel Rosa, entre tantos, mais cedo ou mais tarde viriam à baila. Porém, é inquestionável que as gravações de Francisco Alves e Mário Reis contribuíram tremendamente para que esse sucesso acontecesse.

Apesar do enorme destaque conquistado, Mário Reis abandona a carreira em 1936, aos 28 anos, para se dedicar à administração pública na Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

Francisco Alves seguiu a carreira e em 27 de setembro de 1952, quando retornava ao Rio de Janeiro de um show em São Paulo, morreu em um acidente na altura de Pindamonhangaba.

Seja por um motivo inusitado, seja por uma razão trágica, o público jamais viu a decadência artística de nenhum dos dois. Cumprido o papel, saíram de cena no auge.

Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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SURGEM AS ESCOLAS DE SAMBA

por Antonio Marcelo Jackson







Segundo depoimento de Ismael Silva foi numa das tardes de conversa e samba no Estácio que lhe veio a ideia de comparar aquilo que ele, Bide, Nilton, Marçal, Brancura, entre tantos, faziam por ali com o que acontecia do outro lado do Largo, no Instituto de Educação: “se lá formam professores”, dizia Ismael, “aqui somos professores de samba”; “se lá é uma escola, aqui, portanto, é uma escola de samba”.

Assim, em 18 de agosto de 1928 surgia a Escola de Samba Deixa Falar, no Largo do Estácio, e no ano seguinte estavam seus componentes disputando o concurso promovido por Zé Espinguela no Engenho de Dentro e que já tratei em episódio anterior.

Com a confusão criada no concurso do Engenho de Dentro e a desistência de Espinguela em promover nova contenda, entenderam os grupos que poderiam realizar algum desfile na região da Praça Onze, próximo de onde havia a balança de pesagem dos produtos que seriam vendidos no Centro da cidade e que era ponto de encontro e de música de muita gente. Nesse sentido, entre 1930 e 1931 foram realizados desfiles bastante improvisados e com intensa participação das polacas do mangue, conforme pesquisa de Humberto Franceschi, estimuladas por Nilton Bastos, Brancura, entre outros.

De acordo com o estudo clássico de Sérgio Cabral, em 1932 o jornalista esportivo Mário Rodrigues Filho (irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues) e que tempos depois teria seu nome no estádio do Maracanã, tinha um problema para resolver. Proprietário do diário Mundo Esportivo ficava sem assunto após o término do campeonato de futebol e via declinar o número de exemplares vendidos. Por coincidência, na redação trabalhavam Antônio Nássara, Orestes Barbosa, Carlos Pimentel, entre outros, todos ligados à música ou diretamente ao samba.

Assim, Mário Filho entendeu por bem patrocinar o desfile que acontecia na Praça Onze, buscando criar regras para o mesmo. Já no primeiro foi exigido uma Ala das Baianas, em homenagem as “tias” que tanto fizeram o nome da Pequena África. Deveriam apresentar sambas inéditos (ainda não era o samba-enredo que conhecemos e que apenas aparecerá tempos depois com Paulo da Portela, conforme apresentado em outro episódio) e deviam usar somente instrumentos de percussão. Vamos a um exemplo do período e pouca gente sabe. Um samba de Cartola cantado pela Mangueira no carnaval de 1934: Divina Dama:

Esse último item demonstrava a força do paradigma do Estácio em relação ao paradigma da Praça Onze, ou seja, o samba marcheado era o ideal para esse tipo de desfile quando comparado ao samba amaxixado. A institucionalização do desfile de carnaval a partir das ações de Mário Rodrigues Filho e de seu jornal Mundo Esportivo contribuíram, sem dúvida, para que o modelo de samba de Ismael Silva se transformasse na principal referência do ritmo. No primeiro desfile a vitoriosa foi a Mangueira, seguida pela Vai como Pode (futura Portela), em terceiro Para o Ano Sai Melhor e, em quarto, a Unidos da Tijuca.

Esse primeiro desfile de 1932 já ocorria com a presença de Getúlio Vargas no poder do país e das mudanças que paulatinamente aconteciam nas relações política e nos interesses do Estado.

Assim, em 1933 um novo desfile aconteceu, dessa vez sob o patrocínio do jornal O Globo, e que contou com um número cada mais expressivo de escolas participantes.

Frente isso, diversos líderes entenderam que deveriam organizar melhor os interesses do samba e fundaram em 1934, conforme os estudos de Sérgio Cabral, a União das Escolas de Samba, que passaria a ser a responsável pelo carnaval dessas agremiações.

Percebendo esse nível de organização, o interventor no Distrito Federal, exercendo a função de prefeito, o médico Pedro Ernesto, buscou cooptar esse grupo para a esfera de influência do poder público.

Contudo, verdade seja dita, havia o interesse recíproco dos fundadores da UES (União das Escolas de Samba) em também se aproximarem do governo Vargas. Não era novidade a relação entre aqueles que praticavam o samba também se relacionarem com a política e ninguém estranharia se tal ocorresse mais uma vez.

Com isso, já na fundação os sambistas reivindicavam alguma espécie de subvenção da Prefeitura e em troca acatariam sugestões vinda do alcaide. Não levou muito tempo para os desfiles não apenas assumissem o caráter de legítimo representante da cultura brasileira – ainda que fosse uma cultura oficial – e em troca garantissem a legitimidade política do governo que ali estava.

Não é à toa que, a contar de 1935, os desfiles das escolas de samba passaram a ter temas nacionais e ano a ano buscassem maior participação e importância. Nesse primeiro desfile oficial sob a administração da prefeitura do Rio de Janeiro, a campeã foi a Vai como Pode com o enredo “O Samba Dominando o Mundo”, seguida da Mangueira.

Ainda no cabo-de-guerra que acontecia no carnaval carioca, a UES buscou maior espaço no ano de 1936. Segundo a pesquisadora Paula de Almeida, a Diretoria Geral de Turismo do Rio de Janeiro havia anunciado apoio às grandes sociedades, aos ranchos e blocos um valor bem superior ao que seria direcionado às escolas de samba e a UES protestou em diversos jornais.

As reivindicações continuariam ainda por algum tempo até que com o ingresso da década de 1940, o desfile das escolas de samba ganhou a notoriedade que tanto almejava desde a primeira metade da década de 1930.

em termos tanto materiais quanto em termos simbólicos isso deixava claro a contar de 1942 quando o desfile saiu da Praça Onze para a Avenida Rio Branco. Nesta era o local por excelência das chamadas grandes sociedades carnavalescas e por muitos anos fora reivindicado pela União das Escolas de Samba. A contar daí estava demonstrado que, sem dúvida, o carnaval não seria mais igual aquele que passou.

Até nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA!

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PAULO BENJAMIN DE OLIVEIRA,
O PAULO DA PORTELA


por Antonio Marcelo Jackson




Nascido na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro em 1901, Paulo Benjamin de Oliveira ainda na infância se viu obrigado a troca de bairro em virtude dos problemas financeiros enfrentados por sua mãe: sozinha para criar os três filhos, encontrou condições melhores no início da década de 1920 nos subúrbios surgidos do loteamento das terras do boiadeiro Lourenço Madureira.

Sua chegada em Osvaldo Cruz é também o início de suas ações quanto ao samba e o carnaval. Nesse mesmo ano, funda o bloco Ouro sobre o Azul, seguindo o estilo dos ranchos criados anos antes por Hilário Jovino Ferreira na Pequena África.

Tornando-se um festeiro no bairro, conhece a organizadora do bloco Quem Fala de Nós Come Mosca (composto majoritariamente por crianças e que por isso mesmo desfilava durante o dia com autorização da polícia) e que também era considerada a maior organizadora de eventos, Esther Maria Rodrigues. Dona Esther era tão respeitada que suas festas tinham a freqüência de não apenas as pessoas de Osvaldo Cruz ou das redondezas, mas também da classe artística e das camadas mais altas da sociedade, conforme atesta do Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira.

Em 1926 cria com Antônio Rufino e Antônio Caetano o Bloco Carnavalesco Conjunto de Osvaldo Cruz, recebendo apoio mais à frente de Heitor dos Prazeres entre outros.

Em seguida, outro bloco existente em Osvaldo Cruz denominado Quem nos Faz É o Capricho, reúne-se ao deles trocando de nome em 1930 para Vai como Pode e que, cinco anos depois, passaria a se chamar Portela.

Retornando a Paulo Benjamin de Oliveira, pouco a pouco percebe as linhas imaginárias que separam os diversos segmentos sociais no mundo carioca e brasileiro. Oriundo da região da Gamboa e residindo desde os 19 anos em Osvaldo Cruz, Paulo nota que o olhar que parte significativa das elites – principalmente econômicas – dirigia aos grupos mais humildes – onde se localizavam os sambistas – criava um enorme fosso separando as partes.

Com isso, para o pesquisador Edson Farias, por exemplo, Paulo da Portela busca a construção de um diálogo entre os segmentos sociais por perceber que, sem tal ponte, o samba teria enormes barreiras para transpor.

O primeiro passo foi de tratar da apresentação do sambista. Sua conhecida frase “pés e pescoços ocupados” determinava que todo sambista, todo músico, deveria se apresentar com terno, gravata e sapatos. Se havia uma estética européia na elite carioca e se essa estética em nada atrapalhava a organização de seu principal interesse, o samba, então não existia problema algum nessa “concessão” (entre aspas).

Da mesma forma, também percebeu a importância da imprensa e dos grupos intelectuais em relação aos músicos e ao samba das camadas mais humildes do Rio de Janeiro.

Aproximando-se dos jornalistas, conseguia pautar os periódicos com matérias que valorizavam o samba e cultura popular da cidade.

Reunindo-se a grupos intelectuais, fazia com que o samba e a cultura negra se transformassem em temas de fundamental importância nos estudos sobre o Brasil.

Assim, não é de se estranhar quando estudamos, por exemplo, a história das escolas de samba e temos sempre seu nome associado aos desfiles e a organização das agremiações – originalmente, por razões mais do que óbvias, a Portela que ajudara a fundar.

Sua enorme capacidade como articulador, alinhavando um tema entre diversos grupos sociais e de interesse, transformavam-no em figura emblemática na capital da primeira metade do século XIX. Eleito pelo voto popular como o maior compositor de samba em concurso organizado pelo jornal A Nação em 1935, é escolhido “cidadão-Momo” em 1936 e “cidadão-samba” em 1937.

Em 1939 é autor de “Teste de Samba”, considerado o primeiro samba-enredo da história do carnaval carioca, visto que todo o desfile da Portela foi organizado tendo como referência o tema desenvolvido na letra de Paulo. Vamos ouvir esta obra na interpretação de Manacéa e a a Velha Guarda da Portela:

Na época da chamada “política de boa vizinhança” promovida pelos Estados Unidos para conquistar apoio na Segunda Grande Guerra contra a Alemanha e países do Eixo, recebeu em 1941 o cineasta Walt Disney no Rio de Janeiro levando-o até a quadra da Portela para conhecer o samba. Foi nessa visita que surgiu a inspiração para a personagem Zé Carioca.

Foi nesse mesmo ano de 1941 que numa briga com a direção da escola de samba que fundara, afastou-se definitivamente da Portela. Diga-se de passagem, uma briga por motivos banais. Paulo, Heitor dos Prazeres e Cartola estavam numa turnê em São Paulo e chegaram quase na hora do desfile. Entendendo que ele era um fundador e que, portanto, teria direito a participar e colocar qualquer outro integrante no desfile, foi barrado porque Cartola era vinculado a Mangueira e porque não estavam com roupas adequadas ao desfile.

Magoado com a atitude, entrou para a Lira do Amor, do bairro Vizinho de bento Ribeiro,  sem entretanto desenvolver o trabalho que fizera em Osvaldo Cruz.

Não fosse isso o suficiente, de acordo com a pesquisadora Marília Barboza, talvez um dos maiores problemas enfrentados por Paulo Benjamin de Oliveira foi por ter compreendido a necessidade do diálogo entre partes tão distintas da sociedade e, consequentemente, de interesses tão diversos e isso não ser pactuado pelas demais pessoas naquele momento. Assim, não via problemas em levar um samba composto e cantado no terreiro da escola para uma gravação no Centro do Rio de Janeiro enquanto que para seus parceiros de Osvaldo Cruz isso era inadmissível.

Pouco a pouco se afastou daquele grupo que por mais de 20 anos convivera. Na madrugada de domingo, 30 de janeiro de 1949, vindo do Circo teatro São Jorge onde conversara sobre uma futura apresentação passa mal ao chegar em casa e o coração, que quatro vezes antes o levara ao hospital, dessa vez não lhe dá tempo. Numa vila humilde, entre Osvaldo Cruz e Madureira, morria Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela.

Nos dias seguintes, todos os jornais da cidade estampam nas primeiras páginas o ocorrido e, principalmente, o enterro que levou nada mais nada menos que 15 mil pessoas numa procissão de sua casa ao cemitério de Irajá. Cartola, em depoimento ímpar, disse “eu lutei sempre pela Mangueira; Paulo lutou pelo samba”. Seu túmulo recebeu o número 2.908; a centena que deu no resultado do jogo do bicho de segunda-feira. Deu águia! Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.


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OS SUBÚRBIOS DO RIO DE JANEIRO

por Antonio Marcelo Jackson








Com uma ocupação que em sua maior parte tinha origem nas migrações do Vale do Paraíba fluminense e de Minas Gerais, em ambos os casos a partir do fim da escravidão em 1888, os subúrbios do Rio de Janeiro possuem suas singularidades.

Primeiro porque, juntamente com essas migrações, determinados atos governamentais também contribuíram para a ocupação da região. Por exemplo, seguindo o mesmo raciocínio do Barão de Drummond e seu bairro planejado de Vila Isabel, na área do Engenho Velho (atual Tijuca), inaugura-se em 1912 o bairro proletário de Marechal Hermes, próximo a Osvaldo Cruz, com uma lógica urbana que determinava não apenas a construção das residências, mas também, da escola, hospital, teatro e mais à frente de um cinema. No ano seguinte, no então proletário bairro da Gávea, surge a Vila Orsina da Fonseca e, no mesmo ano, em Manguinhos, outro bairro planejado.

Apesar dessa fórmula aparentemente justa de ocupação urbana, é importante lembrar que todas essas ações seguiam as determinações elaboradas à época de Pereira Passos, quando a cidade foi dividida em áreas de importância social e econômica, a saber, o Centro (a área mais antiga da cidade), a zona portuária (Gamboa, Saúde e Santo Cristo), a Zona Sul (que deveria ser ocupada pelas elites e que teve início com a Glória, Flamengo e Botafogo) e a Zona Norte (área proletária, ou seja, para a residência de trabalhadores e pequenos negociantes). Como curiosidade, a expressão “Zona Sul” surgiu apenas em 1927 com o jornal da Associação Comercial de Copacabana para indicar a área “ao sul do Cristo Redentor” como região mais nobre e sofisticada. Como conseqüência, as demais receberam os nomes que conhecemos, conforme a pesquisadora Vilma Homero.

Vale lembrar também que, curiosamente, os morros da cidade não entraram nesse “loteamento” elaborado por Pereira Passos e tal fato contribuiu muito para a formação das comunidades mais carentes do Rio denominadas por décadas como favelas.

Da mesma forma, tal divisão contribuiu para delinear o comportamento das pessoas que nesses locais passaram a residir em virtude das características culturais, sociais e econômicas.

Assim, ao contrário da dinâmica social da pequena África, onde as atividades do cais do porto e do comércio davam o ritmo, e do Estácio, com suas relações entre a malandragem e a prostituição do Mangue, Osvaldo cruz e Madureira, por exemplo, tinham um viés muito mais pautado nas tradições e relações familiares e em parte numa agricultura doméstica realizada nas pequenas chácaras que dominavam o cenário. É claro que em virtude da expansão da rede ferroviária para a região a contar da última década do século XIX inúmeras pessoas podiam trabalhar em outros bairros. Porém, a idéia de que era a família a espinha dorsal do mundo social imperava.

Retornando ao tema inicial, as migrações oriundas de Minas Gerais e do Vale do Paraíba fluminense contribuem para a formação dentro da cidade do Rio de Janeiro de valores culturais cuja origem era bem distante da capital. Assim, de acordo com a pesquisa de Dyone Chaves Boy, o jongo dos bantos cantado e dançado em Valença, Centro-Sul do atual estado do Rio de Janeiro, aparece no Morro da Serrinha, em Madureira; algo semelhante se dá no Morro do Salgueiro, ocupado por mineiros que trouxeram a dança do caxambu (uma das formas rítmicas do jongo) para a cidade.

Em Osvaldo Cruz, também com uma forte presença mineira, ainda que não se destaque de forma marcante nenhum ritmo bantu (como o jongo e o caxambu), tem-se a construção de relações sociais bem distintas daquelas presentes na Pequena África.

Na região portuária e no centro do Rio somando-se a forte ocupação ioruba e muçulmana que por si só já trariam suas distinções, havia também o princípio de que a constituição de uma família nos moldes mais tradicionais não era o mais importante - na medida em que as relações comerciais imperavam no cotidiano e, mais até, a religiosidade distribuída entre ialorixás e babalorixás faziam de homens e mulheres seres em iguais condições.

Já em Osvaldo Cruz, conforme o pesquisador Carlos Monte, o que imperava era a família mais tradicional, cujas relações sociais eram determinadas pelo que fosse perene, estável. Assim, temas vinculados a cantos de trabalho (originalmente de áreas rurais) ou assuntos claramente vinculados a um cotidiano tradicional eram os motes que reinavam na música que se fazia por lá.

Da mesma forma, a mulher não era vista como uma parceira/concorrente no dia-a-dia da cidade como acontecia na Pequena África, mas sim, uma companheira do cotidiano, dividindo as dores e as delícias que a vida proporcionava.

Dessas relações sociais distintas fornecerão o escopo para o tipo de música e mais particularmente de samba que seria criado por essas áreas.

De um lado, como estavam distantes do debate entre o “paradigma da Praça Onze” e o “paradigma do Estácio”, as fórmulas musicais poderiam criar – e de fato criaram – estilos que transitaram entre as duas matrizes sem qualquer constrangimento ou limitação.

Assim, o “miudinho”, música típica de terreiro das escolas de samba e grupos de carnaval presentes no subúrbio é inequivocadamente tributário do samba de roda da Bahia, do maxixe e do samba de Donga e de sua Praça Onze; da mesma forma como as percussões e usos dos surdos e demais instrumentos são filhos inquestionáveis do Estácio.

De outro lado e como complemento ao item anterior, percebe-se que nos diversos subúrbios a música desenvolvida e as atividades vinculadas ao samba e mesmo ao carnaval ganharão um grau de sofisticação que o embate entre Praça Onze e Estácio jamais permitiriam.

A música que acabamos de ouvir, “Quantas Lágrimas” de autoria e interpretada pro Manacea e a Velha Guarda da Portela, é um dos melhores exemplos do que foi citado anteriormente. Com modulação melódica exemplar e letra onde o debate sobre a velhice assume áreas de enorme sofisticação, este samba é inquestionavelmente o resultado das duas grandes matrizes da Praça Onze e do Estácio com requintes de nobreza.

Evidentemente, falta ainda explicar como essas diversas reuniões de pessoas nos subúrbios serviu de base para o surgimento mais à frente das escolas de samba. Mas, isso, é claro, fica para um próximo NO TEMPO DO SAMBA. Até mais e um grande abraço a todos.

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ISMAEL SILVA 

E O SAMBA DE SAMBAR DO ESTÁCIO

por Antonio Marcelo Jackson





Como dito em episódio anterior, a Cidade Nova e mais especificamente o largo do Estácio era o local de um enorme contingente de mulheres e homens pobres expulsos da região Central com as obras de Pereira Passos. Não é de se estranhar, portanto, que nos termos musicais das pessoas que lá habitavam existisse uma característica bem marcante: a ausência de uma presença de destaque para qualquer instrumento de cordas, sopro e muito menos a existência de piano.

Verdade que se tinha Benedito Lacerda, que se tornaria um dos maiores parceiros de Pixinguinha quando o Mestre adotou o sax e deixou a flauta. Mas, isso o soldado de polícia Benedito apenas fazia quando tocava nos ranchos. No geral, eram os instrumentos de batucada, muitos dos quais inventados inclusive pelos freqüentadores do Largo do Estácio.
                                                  
Para o pesquisador Humberto Franceschi, referência principal nos estudos sobre o grupo, a contar de 1926 as músicas apresentadas por lá possuíam algumas características: a primeira delas eram as notas musicais mais prolongadas em um andamento mais rápido; a segunda, era a cadência marcada não mais pelas palmas dos participantes, mas principalmente pelos instrumentos de percussão.

Torna-se interessante, porque uma das características da música africana é ter na sua marcação instrumentos graves de percussão – coisa que por muito pouco o Estácio não reproduziu.

Reunia por fim, em terceiro lugar, aquilo que Sinhô já desenvolvera há algum tempo e que seria multiplicado pelo grupo, a saber, trazer nas letras pequenas crônicas de costumes.

Essas alterações aparentemente simples faziam com que essa nova forma de samba se aproximasse da marcha e se distanciasse do maxixe. Surgia aquilo que o pesquisador Carlos Sandroni denominou da distinção entre o “paradigma da Praça Onze” do “paradigma do Estácio” quando tratamos de samba.

Nesse sentido, torna-se necessária a inclusão de um dos principais nomes da turma: Ismael Silva,

Nascido em Jurujuba, aldeia de pescadores em Niterói, estado do Rio de Janeiro, em 1905, Ismael ficou órfão de pai aos três anos de idade e sua mãe teve de se mudar com os filhos para a entrada do Morro de São Carlos, no Estácio. Segundo a lenda, alimentada pelo próprio, foi sozinho à escola mais próxima de sua casa e demonstrou interesse em matricular-se. verdade seja dita é que em 1922 terminava o ginasial e com 17 anos já freqüentava os bares e cafés e lá encontrou quase todos os parceiros musicais e de samba que futuramente teria.

Cinco anos depois, em 1927, quando estava internado no Hospital da Gamboa, Alcebíades Barcelos o visitou para apresentar uma proposta inusitada: o já famoso cantor Francisco Alves desejava comprar seu samba “Me Faz Carinhos”.

Surpreendente para ele a prática de comprar sambas era coisa comum entre os artistas e os autores nas décadas de 1920 e 1930. Alguns, como era o caso de Francisco Alves, acabava por incluir seu nome entre os “autores” – entre aspas, é claro -; outros, como Mário Reis, apenas se assegurava dos direitos da venda dos discos em troca da compra. Em uma época em que, não existindo o recolhimento dos direitos autorais, o comércio de obras artísticas era inúmeras vezes uma das poucas formas de sustento do compositor popular. A figura do “comprositor” era, portanto, circunstancialmente aceitável.

Mas, retornando ao ponto principal, já ficava claro que algo diferente se fazia pelas bandas do Largo do Estácio. Nas conhecidas palavras de Ismael Silva, o que ele pretendeu desde o início era criar alguma coisa para se sambar andando: um samba de sambar andando. Um samba que fizesse mexer os braços e liberar as pernas para seguir em frente no caminho das ruas.

De fato, se observarmos com acuidade, o ritmo do maxixe, influência capital no “paradigma da Praça Onze” é algo que se faz quase que em rodopios, sem que quase nada se saia do lugar. Mesmo quando lembramos do samba de roda do Recôncavo da Bahia, o mesmo acontecia: os dançarinos não se deslocavam.

Como a proposta agora era caminhar com o bloco num ritmo que fosse um samba, as alterações promovidas por Ismael Silva juntamente com os chamados “bambas do Estácio” permitiam esse desejado movimento – e não é de se estranhar, portanto, que a matriz buscada pelo compositor fora a marcha.

Braços livres, como que exaltando a festa, numa cadência em que o movimento de ir em frente é ininterrupto, o samba de sambar do Estácio conquistava seu espaço. Numa entrevista concedida ao Diário Carioca em janeiro de 1930 e recuperada pelo jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, o compositor Sinhô descrevia a tal novidade:

“a evolução do samba? Com franqueza não sei se o que ora se observa devemos chamar de evolução. (...). O samba, meu caro amigo, tem sua toada e não e pode fugir dela. Os modernistas, porém, escrevem umas coisas muito parecidas com marcha e dizem que é samba.”

A magoada declaração de Sinhô, que faleceria meses depois, deixava a marca do que seria uma das disputas mais acirradas ao longo de algumas décadas do que deveria ser verdadeiramente um samba.

O mesmo Sérgio Cabral, tempos depois, seria testemunha ocular de um debate extraordinário entre Donga e Ismael Silva. Dizia Donga:

“samba é isso há muito tempo: o chefe da polícia pelo telefone mandou avisar/ que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. E Ismael interrompeu: isso não é samba! É maxixe. E Donga retrucou: então o que é samba? Respondeu Ismael: “se você jurar que me tem amor/ Eu posso me regenerar”. Nisso, cortou Donga: “isso não é samba! Isso é marcha!”

No final, prezado ouvinte, podemos dizer, como Sérgio Cabral, que isso é samba. Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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DISPUTAS NO CARNAVAL E NO SAMBA

por Antonio Marcelo Jackson






De acordo com pesquisadores com Nei Lopes, Humberto Franceschi, Sérgio Cabral, entre outros, é praticamente inegável que quase a totalidade das rodas de samba que aconteciam no Rio de Janeiro estavam vinculadas ao nascente candomblé, pouco importando se o mesmo possuía matriz mais ioruba/nagô, como era o caso de João Alabá, no bairro da Saúde, ou como o caso de Henrique Assumano Mina do Brasil, na Cidade Nova, que praticava os ritos muçulmanos. Vale como curiosidade informar que os candomblés de matriz ioruba/nagô – com a exceção do acima citado – possuíam notadamente a liderança feminina, formando assim uma sociedade matriarcal a tal ponto que eram as mulheres que vez por outra iam à Bahia para compras ou buscar diversas informações, enquanto que os de matriz muçulmana tinham homens no posto principal: sabia-se, portanto, o estilo do terreiro conforme o gênero, ou seja, babalorixá ou ialorixá.

Essa proximidade se dava primeiramente pela enorme proximidade da dança – e consequentemente da música – com os rituais do candomblé. E isso acontecia mesmo quando se tratava de uma dança e um ritmo cuja origem não fosse iourubá ou muçulmana, como era o caso do jongo, notadamente banto.

Assim, os terreiros de candomblé da Pequena África e de outros bairros ou mesmo cidades em torno da então Capital Federal, passaram a ser núcleos de festas e rituais que bem poderiam começar com jongos, passar pela cerimônia do candomblé propriamente dito e terminar com batuques e sambas de roda.

Frente a isso, não é de se estranhar a presença marcante das ialorixás como Tia Ciata e as demais baianas, assim como os pais de santo não apenas como chefias religiosas, mas também como lideranças na música e no carnaval.

E isso não acontecia necessariamente de forma pacífica. Hilário Jovino, já citado em episódio anterior, ficou hospedado certo tempo na casa de Miguel Pequeno quando chegou da Bahia, e este último, de acordo com Donga, era o “embaixador da Bahia no Rio de Janeiro”, conforme nos chama a atenção a pesquisadora Maria Pereira da Cunha.
Pequeno era amigo de longa data de Ciata e casado com Amélia Kitundi, conhecida por sua enorme beleza. Quis o destino que Hilário e Amélia se apaixonassem e fugissem causando enorme furor na comunidade e gerando não apenas uma contenda amorosa, mas também uma rivalidade carnavalesca: Hilário Jovino foi o fundador e líder do Rei de Ouro e Ciata fundou o Rosa Branca.

Disputas como essa, ainda que fosse de origem bem distinta do carnaval, surgiram com o tempo entre diversos blocos e ranchos, e vez por outra podiam mesmo chegar às vias de fato.

De qualquer modo, outros blocos e ranchos foram surgindo e assumindo a idéia de que um poderia ser melhor do que o outro a cada carnaval. No Catete, longe dos bairros africanos do Rio, surgiu o Ameno Resedá; depois veio o Filhos da Estrela, o Flor do Abacate, entre tatos que passaram a povoar as festas de Momo do Rio de Janeiro.

Também fora da Pequena África, mas líder de candomblé, na década de 1920 no bairro do Engenho de Dentro existia a figura de José Espineli, muito mais conhecido por Zé Espinguela. Chefe de terreiro nesse bairro e com moradia também no Morro da Mangueira, tinha por hábito estimular os compositores em suas festas colocando na roda um tema a exigindo de cada um dos autores/músicos um samba a ser composto na hora. Se no samba de roda da Bahia existia um mote e cada um tinha como desafio a composição de uma estrofe, no caso de Espinguela a coisa era bem mais radical, afinal era uma música inteira que devia ser composta.

De toda forma sua fama em desafiar os compositores se consolidou e em janeiro de 1929 entendeu por bem promover um campeonato de sambas em seu terreiro no Engenho de Dentro. Como lembra Humberto Franceschi, a escolha da data não fora aleatória, visto que 20 de janeiro é a data de Oxossi, orixá de Espinguela, Dia de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, e Dia de São Jorge, na cidade de Salvador.

Presidido pelo próprio Espinguela e tendo como jurados alguns jornalistas convidados, os grupos participantes poderiam apresentar duas músicas no campeonato. Concorreram o Conjunto de Oswaldo Cruz ou Vai como Pode, sambistas da Mangueira e a Deixa Falar, do Estácio. Ganhou o samba “Não Adianta Chorar”, de Heitor dos Prazeres, de Oswaldo Cruz, seguido de “Eu Quero É Nota”, de Arthur Faria, da Mangueira, e em terceiro “Ando Cismado”, representando o Estácio e de autoria de Ismael Silva e Noel Rosa.

De acordo com o regulamento do campeonato, os troféus seriam entregues no domingo de carnaval na balança da Praça Onze.

Além de área de destaque pela casa de Tia Ciata de outras baianas, a Praça Onze também era o local onde as mercadorias que se destinavam às mercearias e barracas do Centro eram avaliadas e pesadas pra a cobrança dos impostos – daí sua famosa balança. Como distração, após o trabalho os carregadores promoviam batuques e pequenas rodas de samba onde os versos de improviso eram o destaque das comemorações.

Por isso a escolha da balança para a entrega dos troféus. O que Zé Espinguela não esperava era a revolta da turma da Mangueira e da turma do Estácio com o resultado. Corria a boca pequena que haveria quebra-quebra no domingo de carnaval, dia da entrega dos prêmios. Espinguela, então, inteligentemente, comprou três troféus idênticos, colocou-os lado a lado, o primeiro enrolado com fitas azul e branco (da Vai como Pode), o segundo com vermelho e branco (Deixa Falar) e o terceiro com fitas verde e rosa (da Mangueira). A briga não aconteceu e festa correu solta.

Acabamos de ouvir o samba “Madureira”, de Heitor dos Prazeres na voz do próprio. Dito isto, um grande abraço a todos e até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.





MALANDROS E POLACAS

por Antonio Marcelo Jackson




Sem dúvida que o coração da Pequena África residia, como já disse o pesquisador Humberto Franceschi, num retângulo entre as ruas Visconde de Itaúna e Senador Eusébio, fechado pelas ruas de Santana e Marques de Pombal. Era a então Praça Onze, onde hoje está a estátua em homenagem a Zumbi dos Palmares, na Avenida Presidente Vargas, Centro do Rio de Janeiro. Lá aconteciam as principais festividades; lá surgira o samba nas oficiais mãos de Donga e Mauro de Almeida; por aquelas bandas e outras nos arredores existiam inúmeros clubes dançantes em precárias estruturas possuindo, quando muito, um piano. Em um deles, escreve o pesquisador Franceschi, conta-se que um jornalista chamado Romeu Arede, adepto de consumir bebidas e não pagar, foi barrado certa noite. Como vingança escreveu o dito jornalista nos dias seguintes que aqueles clubes eram locais de gente sem pudor, “onde os escuros cometiam gafes”. Pensando na ofensa, sem querer o triste Arede criou o termo gafieira.
Próximo da Praça Onze, na direção de quem vai para a região do Rio Comprido e daí para São Cristóvão, um bairro surgira como conseqüência da política do bota-abaixo do prefeito Pereira Passos nos primeiros anos do século XX: era a chamada Cidade Nova, ao lado da conhecida Zona do Mangue, que desde a década de 1870 concentrava o baixo meretrício no Rio de Janeiro.
De um lado, um número sem-fim de indivíduos que pouco a pouco foram caracterizados de capoeiras, isto porque, parte significativa deles tivera origem em soldados que, afastados das ações militares e desempregados, tornavam-se adeptos da capoeira, luta angolana e mais do que conhecida entre os bantos do Rio de Janeiro. Temidos por boa parte da sociedade, não demorou muito para que vários se vissem envolvidos na política como cabos eleitorais, particularmente em uma época em que a violência explícita e ausência de qualquer escrúpulo nas práticas eleitorais, sumiço de urnas e votos fantasmas, eram termos comuns a arte da política. Não custa lembrar, por exemplo, a eleição de Hermes da Fonseca para a presidência da República com exatos 400 mil votos – nenhum a mais, nenhum a menos.
É da figura do capoeira que irá surgir após a década de 1920 o chamado malandro carioca.
Do outro lado, na vizinha Zona do Mangue, a prostituição era a principal atividade desde as últimas décadas do século XIX. E dentro da prostituição uma organização internacional ganhou forma e prestígio. Surgida na Argentina a partir de uma cisão de cafetões judeus, a Zwi Migdal, especializou-se no tráfico de escravas brancas para a América do Sul para torná-las prostitutas. Enganadas por promessas falsas e pela extrema pobreza em que vivam na Hungria, Romênia, Áustria e Polônia (de onde derivará o nome “polaca”), inúmeras mulheres foram transportadas para o Brasil e ingressaram nos inúmeros prostíbulos controlados pelos cafetões judeus. Em linhas gerais, a Zwi Migdal controlava os prostíbulos do Mangue, da Lapa, e de parte da nascente Zona Sul do Rio de Janeiro.
Não levou muito tempo para que os capoeiras, agora malandros da Cidade Nova, estivessem envolvidos com a prostituição do Mangue e, consequentemente, com as polacas.
Aproveitavam de sua aptidão para a luta e forneciam em troca proteção, cobrando também, é claro, um tanto de favores sexuais.
Paulatinamente, alguns desses malandros também se transformaram em cafetões, dividindo suas atividades entre a malandragem em si, alguns com a música e a prostituição. Apenas para citar, compositores como Brancura, Nilton Bastos, entre outros, estavam nesse grupo.
Mais ou menos no centro da Cidade Nova está o Largo do Estácio, com botequins e casas humildes onde, vez por outra, malandros, compositores, trabalhadores, operários, toda aquela legião de desvalidos, se encontrava para conversas e rodas de samba. Em 1927, um desses freqüentadores e moradores do Estácio, Alcebíades Barcelos, compôs a música “A Malandragem”. Quis o destino que pouco tempo depois, numa gafieira do Rio Comprido, Alcebíades – ou, simplesmente, Bide – conhecesse o cantor Francisco Alves e este, por sua vez, impressionado com a canção, gravasse em disco. Vamos ouvir um trecho:
Essa apologia da malandragem tornou-se a partir de então um tema constante na música brasileira e, mais notadamente, no samba. Inúmeras vezes entender o sambista e o malandro como sinônimos não é coisa de se estranhar. Apenas para citar, de figuras como o próprio Bide, Ismael Silva, Noel Rosa, Wilson Batista, Moreira da Silva, até os mais contemporâneos como Bezerra da Silva, por exemplo, incorporaram a figura do malandro e a transformaram numa espécie de herói – ou anti-herói – tipicamente carioca.
Ouvimos de Wilson Batista o samba “Lenço no Pescoço” na clássica interpretação de Sílvio Caldas.

Com isso ficamos por aqui. Grande abraço a todos e até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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SINHÔ
por Antonio Marcelo Jackson



Nascido em 8 de setembro de 1888, na rua do Riachuelo, José Barbosa da Silva, o Sinhô, não despontou de imediato para a música. Em parte, porque o pai desejava que ele se dedicasse à flauta, coisa que não demonstrou aptidão; em parte porque o instrumento musical que lhe chamou a atenção ainda quando criança fora o piano – muito caro para os padrões de sua família.

Tempos depois, com a ajuda de um de seus irmãos, teve contato com seu instrumento favorito, e ainda que jamais tivesse estudado música, demonstrou tamanha agilidade que já na década de 1910 era conhecido como músico profissional. Uma das principais agremiações que se vinculou foi a Sociedade Carnavalesca Kananga do Japão, na rua Senador Eusébio, e que tinha seu pai como um dos sócios.

Durante o dia, fazia ponto na Casa Beethoven tocando piano – fato comum a todos os compositores, pois era a forma de vender as partituras das músicas com apresentações constantes nas casas especializadas – ou às vezes até mesmo vendendo pianos, pois ganhava comissões com isso. À noite passava por inúmeras casas dançantes ou perambulava pelas residências de amigos na Pequena África e, principalmente, na residência de Tia Ciata. Não é de se estranhar quando do registro da música Pelo Telefone o nome de Sinhô estivesse envolvido.

Conforme foi dito em episódio anterior, é fato que o tema musical de Pelo Telefone foi quase uma criação coletiva e que Donga e Mauro de Almeida tenham feto alguma modificação e a registrado. Como desdobramento disso, pode-se dizer que Sinhô, Pixinguinha, China (irmão de Pixinguinha), Hilário Jovino, João de Baiana, entre outros, estavam de certa maneira vinculados à criação da música Pelo Telefone. Não chegaram a virar inimigos mortais; mas fizeram surgir uma rivalidade musical tremendamente proveitosa para a música brasileira. De implicância com os baianos, Sinhô compôs “Quem São Eles”; em sequência, poucos anos depois, se auto-intitulou o “Rei do Samba” e por uma briga com Heitor dos Prazeres este último compôs uma música denominada “O Rei dos Meus Sambas”.

Na década de 1920 tinha três grandes marcas: era temperamental e brigão – tratado por alguns como leviano e malandro –, a segunda é que tinha em Mário Reis o seu principal intérprete. Mário Reis pertencia a elite da sociedade carioca e disputava com Francisco Alves o posto de grande cantor popular da época. Por fim, não tornava pública uma única música que não fosse autorizada pelo líder religioso Henrique Assumano Mina do Brasil, ou simplesmente Pai Assumano. Sinhô acreditava piamente que seu sucesso devia-se por exclusividade à força de seu mentor religioso. Seu prestígio era tanto que na visita dos reis da Bélgica ao Rio de Janeiro, foram músicas suas as apresentadas aos
monarcas.

Mas, o que faz de Sinhô uma das peças-chave a música brasileira e do samba? Primeiro a riqueza de suas melodias e harmonias. Mesmo que fosse um músico intuitivo, Sinhô demonstrou em todos os momentos rara habilidade no trato das notas musicais, o que estimulava os intérpretes. O segundo é que assim como demonstrava suas músicas nos clubes dançantes, teve também seu nome ligado a blocos carnavalescos, a contar do próprio Kananga do Japão que também saía às ruas no carnaval. Atuava, portanto, ao longo de todo o ano. Em terceiro lugar porque, seguindo os passos de Chiquinha Gonzaga, teve presença marcante no teatro musicado, a tal ponto que no ano de 1928, por exemplo,
praticamente todos os teatros do Rio de Janeiro tinham peças com músicas de Sinhô.

Por fim, talvez sua maior qualidade, foi o novo papel que deu à composição popular, a saber, o papel de crônica de costumes. Se observarmos todos os compositores da época e os anteriores, com raras exceções percebe-se que a estrutura das letras obedecia a um padrão do samba de roda baiano: havia um mote, um tema central, onde diversas estrofes eram dispostas ao seu redor compondo aquilo que chamamos de letra da música. Vejam, por exemplo, Pelo Telefone: as estrofes funcionam separadamente e em nada se vinculam umas com as outras.

Quando examinamos a obra de Sinhô a letra da canção popular recebe um novo tratamento; ela passa a contar uma história, uma narrativa de um fato corriqueiro, um acontecimento político, um drama social, uma amor que tem como cenário a cidade. As letras tinham uma unidade, estavam costuradas pelo tema e com isso conquistavam outro papel e significado. Por exemplo, canções como “Favela Vai Abaixo” ganham indiscutivelmente a função de crônica de costumes.

No dia 4 de agosto de 1930, residia na lha do Governador e no final da tarde pegou abarca para o Centro do Rio. Barca ainda não atracara e o compositor faleceu no cais da Praça XV. A comoção foi enorme. Em crônica, Manuel Bandeira descreve o enterro do compositor popular: Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Seu corpo foi levado para o necrotério do hospital Hahnemaniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era muita exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente, simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de; baratos, meretrizes, macumbeiros, todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros
dos botequins das Ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas...

Ouvimos a música “Gosto que Me Enrosco”, de Sinhô, na interpretação magnífica de Dorival Caymmi.

Dito isto, uma grande abraço a todos e até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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A QUESTÃO RACIAL
por Antonio Marcelo Jackson




Ao contrário do que a imaginação popular acredita, os elementos racistas não se fizeram presentes desde a implantação da escravidão. A escravidão, em si, produziu relações de poder entre os membros da sociedade brasileira, enquanto que o racismo, surgido na segunda metade do século XIX, estigmatizou relações de qualidade entre os diversos segmentos da sociedade. No primeiro caso, as relações escravistas criaram ideias de que determinados segmentos sócias poderiam comandar os demais e que esse comando tornaria visível o poder destes sobre os outros; já o preconceito racial pressupõe que uma determinada raça possua qualidades distintas das demais, o que lhe fornece condições de ser superior ao restante do conjunto social.

Para o caso brasileiro, foi a partir da década de 1870 que as ideias racistas lamentavelmente por aqui aportaram: primeiro, pela própria presença de um dos principais autores de teses raciais, o francês Conde de Gobineau que era embaixador da França no Rio de Janeiro; e segundo, pela adoção dos intelectuais da Escola de Direito do Recife das propostas evolucionistas e raciais aplicadas aos estudos jurídicos conjuntamente com estudos etnográficos.

Um bom exemplo disso aparece rapidamente com a aplicação do evolucionismo das espécies ao entendimento das sociedades. Reunindo as pesquisas de então sobre as espécies animais e comparando-as com a organização do meio social, os estudiosos oitocentistas concluíram que a mistura das raças era maligna assim como também acontecia no reino animal. O exemplo da palavra “mulato” exemplifica tragicamente esse raciocínio: filho de um branco com um preto seria ele um ser híbrido e estéril, da mesma forma como a mula que vem do cruzamento do jumento coma égua.

Se na etnologia este pensamento se espalhava rapidamente, na área jurídica tais ideias frutificam nos estudos sobre criminalidade do período. Se os seres mestiços ou de raça inferior poderiam ser classificados como fora da curva social, então seriam eles os maiores adeptos da violência e da não civilidade, ou seja, por definição e em princípio, mulatos e negros tenderiam à criminalidade.

Essa proposta absurda, ainda que dentro do contexto da época, vingou no último decênio do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Pouco a pouco, se constituiu um discurso defendendo que a única civilização possível era aquela originada nos padrões europeus. Em outras palavras, tudo o que não fosse nascido no Velho Continente tenderia a ser torpe: comportamento, crenças, valores, religião, música, tudo, enfim, deveria ser classificado com coisa menor ou mesmo uma ameaça à sociedade.

Não fosse esse discurso presente nos estudos etnológicos suficientemente problemáticos, os estudos jurídicos também se fundamentaram nesse escopo e influenciaram as leis penais, a produção das leis civis (notadamente o nosso Primeiro Código Civil, de 1916, e de autoria dos estudiosos da Escola do Recife) ou a interpretação das leis existentes. Assim, não é de se estranhar que as festas promovidas por negros fossem vistas como atos suspeitos e já na década de 1920 algumas leis passaram a classificar o candomblé como crime.

O samba, é claro, não escapou disso. Já entendido como um ritmo musical e que tinha na região da Pequena África um núcleo de fomento, os músicos adeptos desse modelo passaram a ser vistos como marginais e foram perseguidos inúmeras vezes pela polícia como verdadeiros criminosos. Há o caso famoso de João da Baiana que, convidado para uma festa promovida pelo senador Pinheiro Machado, foi detido e teve seu pandeiro confiscado. Dias depois, ao se encontrar com o político, contou-lhe a história, e recebeu de Machado um novo pandeiro com a seguinte anotação no fundo: “presente do senador Pinheiro Machado ao músico João da Baiana”. Pelo que se sabe, nunca mais o pandeiro foi confiscado.

A música que acabamos de ouvir é “Preconceito”, de Wilson Batista e Marino Pinto, na interpretação de Caetano Veloso, Chico Buarque e Paulinho da Viola. De forma simples, a letra chama a atenção para esse problema que irá marcar ao longo de décadas o samba e que será, inquestionavelmente, um de seus maiores desafios.


Grande abraço e até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.



NASCE O SAMBA!
por Antonio Marcelo Jackson



De acordo com praticamente todos os pesquisadores, a palavra samba pode ser identificada em diversas línguas africanas e, em linhas gerais, deriva de semba, que significa umbigada. Nesse sentido, desde o início qualquer coisa ligada a samba era imediatamente vinculado a dança ou festa. Tanto que o primeiro registro que se tem notícia do uso do termo aparece em 1838 na revista chamada O Carapuceiro, publicada em Pernambuco, em um texto de Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama chamado “Samba D’Almocreve” (folguedos praticados por tropeiros em suas viagens).


Quatro anos depois, o mesmo Frei publica uma quadra que passará a ser referência histórica: “Aqui pelo nosso mato/ Que estava então mui tatamba/ Não se sabia outra coisa/ Senão a dança do samba”.


Já no final do século XIX e princípios do século XX, é possível identificar a palavra samba em diversos jornais como sinônimo de festa com música e, em geral, com alguma confusão. Dizer que tinha acontecido um samba ou que iria a um samba significava dizer que alguma briga ou desordem ocorreu ou ocorreria.

Frente a isso, se era comum nas casas da Pequena África a reunião de amigos para uma festa ou mesmo algo de fundo religioso, já mesclando a cultura ioruba com elementos islâmicos e produzindo pouco a pouco aquilo que futuramente seria denominado de candomblé, em geral procurava-se denominar essas reuniões de “pagode”, expressão que na época era bem menos pejorativa do que samba.

Um dos pagodes mais concorridos na Pequena África e que já chamava a atenção de parte das elites cariocas que residiam em Botafogo, o bairro mais chique de então), era o que acontecia na casa de Tia Ciata.

Reuniam-se músicos que atuavam nos teatros e no cinema mudo, adeptos do choro, comerciantes, políticos, promovendo, sem que se percebesse, um mosaico formado por um conjunto sem fim de valores que futuramente daria forma a própria cidade do Rio de
Janeiro. Apareciam o jovem Alfedo Vianna, o Pixinguinha, Ernesto dos Santos, o Donga, João da Baiana, jornalistas como Mauro de Almeida e João do Rio. Políticos como o já citado Wenceslau Brás e Pinheiro Machado (profundo admirador de João da Baiana).

Nesse caldeirão de informações e música, surge em 1913 uma canção intitulada “Em Casa de Baiana”, de Alfredo Carlos Brício, gravada na Casa Edison com o titulo de samba. No ano seguinte, 1914, outra gravação, esta de autoria de Catullo da Paixão Cearense e gravada pelo cantor Baiano, intitulada “A Viola Está Magoada”, também recebeu a marca “samba”. Vamos ouvir um trecho da segunda.

Tanto no primeiro caso, que infelizmente não conseguimos registro sonoro, quanto no segundo que acabamos de ouvir um trecho, apesar do termo samba aparecer, ambas as músicas podem ser classificadas dentro dos ritmos nordestinos e que enorme sucesso faziam no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX.

Dois anos depois, em uma das reuniões na casa de Ciata, aparece um mote musical que, até onde se sabe, diversos contribuíram com versos de improviso. Em 27 de outubro de 1916, foi apresentada a música no Cine Teatro Velo, na Tijuca, com o título de Roceiro.

Em 3 de novembro, uma nova apresentação ocorreu e a música passou a ser chamada de 
Pelo Telefone. Com o sucesso das apresentações, em 16 de novembro Donga e Mauro de Almeida registraram no tabelião Fonseca Hermes, em 20 de novembro deram entrada na Seção de Registros da Biblioteca Nacional e em 27 de novembro de 1916 estava definitivamente registrada a música Pelo Telefone, samba carnavalesco.

Verdade seja dita, o sucesso de Pelo Telefone pode ser creditado a dois fatores. O primeiro deles é que essa canção de fato apresenta inúmeras novidades em relação as demais. Não era um mote nordestino as anteriormente classificadas como samba e nem mesmo poderia ser um maxixe, ainda que sofresse enorme influência. De fato era algo novo! O segundo motivo foi a parodio que surgiu quase que logo depois da primeira gravação, em 1917. Por uma campanha promovida pelo jornal A Noite contra a jogatina que se praticava na Capital Federal, aparece a versão que dizia “O chefe da polícia pelo telefone mandou me avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. Muitos acham que é essa letra original! E, é claro, como se diz o dito popular, se a versão é mais interessante que a verdade, que se fique coma versão. 


Até o nosso próximo No Tempo do Samba.

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Baixe o texto com a bibliografia e ficha técnica. 


As Festas Populares no Rio de Janeiro
por Antonio Marcelo Jackson




É comum em todas as sociedades o hábito da festa como forma de se romper, circunstancialmente, com as rígidas regras de convívio social. Neste sentido e vinculado ao tema que nos interessa, as festividades que ocorriam no Rio de Janeiro entre fins do século XIX e princípios do século XX mesclavam valores de origem europeia com valores nitidamente africanos nos diversos matizes que por aqui aportaram com o tráfico negreiro.

Em linhas gerais, para o nosso tema principal, podemos destacar o entrudo, os ranchos, os blocos e, por diversos fatores, a Festa da Penha.

O entrudo, festa originalmente portuguesa e com nome derivado da ideia de “entrar” (no caso aqui, entrar no período da quaresma), aparece nos primeiros momentos do chamado período colonial e assume características mais carnavalescas no século XIX. Havia o “entrudo familiar” caracterizado por brincadeiras em que jovens jogavam uns nos outros os chamados “limões de cheiro” (bolotas de cera recheadas com perfume) e o “entrudo popular”, onde os “Limões de cheiro” eram recheados com toda espécie de líquido. Vale informar que neste caso os escravos eram proibidos de jogar qualquer coisa em uma pessoa livre, sob pena de serem presos. A brincadeira, portanto, valia apenas para negros e pobres.

Como era muito violento, o “entrudo popular” foi sempre perseguido pelo conjunto de Leis produzidas para coibi-lo, ainda que sem o sucesso esperado.

Já na segunda metade do século XIX surgem os blocos denominados “Zé Pereira”. Conforme a tradição, o primeiro bloco com esse nome teria sido criado por um português residente no Rio de Janeiro chamado José Nogueira Paredes, lá pelo ano de 1846. Como não se praticava a violência do “entrudo”, esse bloco ganhou a simpatia de inúmeras pessoas e, pouco a pouco, conquistou parte da sociedade carioca. Algum tempo depois, em 1867, José Paredes mudou-se para Ouro Preto-MG, e recriou o bloco carioca agora com o nome de “Zé Pereira dos Lacaios” que, por sinal, existe até os dias de hoje.

Concomitantemente a isso, outra forma de se brincar o carnaval surge com os chamados ranchos. De acordo com inúmeros pesquisadores, o primeiro rancho de carnaval surge com Hilário Jovino Ferreira em 1893. Nascido em Pernambuco e levado ainda criança para a Bahia, Hilário chega ao Rio de Janeiro em 1872 e encontra no local em que foi residir (na Pequena África) um rancho de reis denominado Dois de Ouro. Como não gostou da forma como esse rancho se organizava, em seis de janeiro de 1893, criou outro denominado Rei de Ouro. Nesse caso, Hilário Jovino entendeu que o grupo deveria possuir uma organização interna que de um lado se assemelhasse às procissões do Dia de Reis (6 de janeiro), mas que por diversos motivos, deveria sair no carnaval. Em sua organização, o bloco Reis de Ouro tinha porta-bandeira, porta-machado (que era um jovem que acompanhava a porta-estandarte com a missão ora simbólica, ora bem verdadeira, de protegê-la de investidas e agressões quando, por ventura, dois grupos rivais se encontravam em meio ao carnaval e que se transformaria tempos depois na figura do mestre-sala das escolas de samba), entre itens na organização do desfile. O formato definido pelo pernambucano Hilário Jovino Ferreira foi tão detalhado que rapidamente ele assumiu o comando do carnaval e fortaleceu sua liderança entre a comunidade baiana do Rio de Janeiro.

Por fim, como item que podemos destacar, temos a Festa da Penha. Tendo origem no santuário que iniciou sua construção em 1635, a Festa da Penha originalmente era comemorada pela comunidade portuguesa no dia 8 de setembro. Contudo, como a tradição indicava que nessa data sempre chovia muito, tempos depois a comemoração foi transferida para outubro e em fins do século XIX já se prorrogava por todos os domingos desse mês, e consistia na missa solene, cerimônia de benção, barraquinhas de jogos, prendas e comidas, além, é claro, do pagamento de promessas dos penitentes em subir de joelhos os 365 degraus da escadaria do Santuário.

Com a inauguração da linha de trem da Central do Brasil até a Penha na última década do século XIX, paulatinamente se iniciou a presença negra na Festa portuguesa e sua modificação para um festejo que passava a mesclar o elemento religioso embrionário com componentes nitidamente vinculados ao universo popular e laico. Assim, dançarinos, cantadores de modinhas portuguesas, violeiros, toadas do Norte e Nordeste, sambas de roda trazido por baianos, enfim, uma infindável coleção de itens constantes no dia-a-dia carioca passaram a povoar a festa da Penha.

No grupo de pessoas que passa a frequentar a Penha em outubro pensando na possibilidade de realizar negócios com seus quitutes está a baiana Hilária Batista de Almeida, muito mais conhecida por Tia Ciata. Nascida em Salvador-BA em 1854, vem para o Rio de Janeiro em 1876 e se instala na Rua da Alfândega. Casa com João Batista da Silva, também baiano e que em Salvador chegou a cursar a Faculdade de Medicina (sem completa-la). No Rio de Janeiro, ele trabalha como funcionário público na Alfândega e, posteriormente, na Chefia de Polícia, por interferência direta do Presidente da República Wenceslau Brás.

Ciata tornou-se famosa pela moqueca de peixe que servia e pelas rodas de samba (a palavra samba é aqui entendida como festa e que trataremos em outro episódio) em sua casa.

Voltando a Festa da Penha, a popularidade da mesma com a mistura entre o profano e o sagrado fazia com que em princípios do século XX mais de 100 mil pessoas visitassem o bairro no período e que passaram a ser atraídas enormemente pelos festejos musicais. Durante um bom tempo a Festa da Penha foi o palco principal do lançamento de músicas que poderiam, meses depois, incendiar o carnaval carioca. Mas, isso é uma outra história. Vamos ouvir de Sinhô, um dos autores de maior sucesso na Festa da Penha, a música QUEM SÃO ELES na interpretação da Lira Carioca, Carla Sandroni e  Marcos Sacramento e na letra há claramente a crítica do autor ao grupo dos baianos da Pequena África. Vamos ouvi-los e até o próximo episódio.

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Os Cenários Sociais no Rio de Janeiro
por Antonio Marcelo Jackson



Até 1770 os escravos desembarcavam na Praia do Peixe (atual Praça XV) e eram negociados na Rua Direita (atual Rua 1º de Março). Com a legislação apresentada em 1774 e justificada por motivos sanitários (entendidos aqui pelo cenário de se ver um conjunto de homens e mulheres negros e nus desembarcando na principal via da cidade), o Vice-Rei, Marques de Lavradio, determinou a mudança para a região do Valongo (atualmente a Praça Mauá), coisa que efetivamente aconteceu em 1779. Daí até 1831 quando a pressão inglesa pelo fim do tráfico negreiro se iniciou, o local funcionou como o principal centro de desembarque de escravos do país. Por volta de 1843, ainda que transformado para receber a futura esposa do Imperador D. Pedro II (e renomeado Cais da Imperatriz), a região continuou como um centro aglutinador da população negra. Daí formou-se com o tempo um imenso trapézio imaginário partindo do Cais da Imperatriz e, principalmente, do território ao lado denominado Pedra do Sal (em virtude de ser ali o desembarque do sal no porto do Rio), indo até o antigo mercado da Praia do Peixe (onde atualmente localiza-se o CCBB), seguindo uma linha imaginária até a atual Praça Onze, atravessando o Morro logo atrás da estrada de Ferro Central do Brasil (posteriormente denominado Morro da Favela e, por fim, Morro da Providência), chegando a região da Gamboa e retornando à Pedra do Sal. A área desse trapézio imaginário será denominada no século XX pelo compositor Heitor dos Prazeres como sendo  a PEQUENA ÁFRICA, em virtude da enorme concentração de negros na região.

Essa concentração se deu não apenas pela localização do mercado de escravos do Valongo, mas também por que muitos forros passaram a habitar o local, acrescidos das três migrações baianas para o Rio de Janeiro no século XIX e que citei ainda que rapidamente em episódio anterior. Ampliando a conversa, isto significou a reunião na PEQUENA ÁFRICA de bantos (em boa parte ocupantes originais) com hauças vindos após a Revolta dos Malês e a Lei Eusébio de Queiroz que aboliu definitivamente o tráfico no Brasil (há registro de chegada de escravos clandestinamente ao norte da província do Rio de Janeiro no início da década de 1870 como sendo o derradeiro desembarque). Essa transferência de escravos para a Corte se deu pela expansão da economia cafeeira no Vale do Paraíba e a necessidade de novos braços para tocarem as fazendas e todo o sistema de produção de café dentro da perversa lógica escravista. Contudo, não apenas vinham escravos: aportavam também negros forros (homens e mulheres livres) e toda uma legião de desvalidos buscando na capital do Império uma sorte melhor em suas vidas. Parte passou a residir nas chamadas CASAS DE CÔMODOS ou, como se tornaram popularmente conhecidos, os CORTIÇOS. Um dos melhores retratos da vida nos cortiços ou casas de cômodos é o samba de roda de autoria de JOÃO DA BAIANA, estivador do cais do porto do Rio, compositor e um dos fundadores do samba carioca. Seu título é BATUQUE NA COZINHA, aqui apresentado na gravação magnífica de Martinho da Vila. A letra é uma das melhores crônicas de costumes da época descrevendo perfeitamente o dia-a-dia dos moradores.

Por outro lado, parte das mulheres libertas, já mesclando valores da cultura hauça (islâmica) com valores iorubas/nagôs, montaram pequenas bancas de quitutes e outras merendas próximo ao Mercado do Peixe: em poucos anos elas já dominavam o cenário do comércio local numa espécie de sociedade de liderança matriarcal e imortalizando no Rio de Janeiro a figura da baiana e suas prendas. Como a religiosidade era comandada por homens e mulheres e estas últimas pouco a pouco passaram a controlar os recursos financeiros – ou, ao menos, possuíam alguma independência frente aos homens – as ialorixás, chamadas tantas das vezes de “TIAS”, ocuparam o cenário da PEQUENA ÁFRICA como personagens de destaque. Os homens, por sua vez, também líderes religiosos (alguns, ao menos), dedicavam-se aos trabalhos da estiva no cais do porto e de outros serviços com alguma especialização.

Com o processo abolicionista iniciado com a Lei Eusébio de Queiroz  e o fim do tráfico (1850), a Lei do Ventre Livre (1871), Lei do Sexagenário (1885) e finalmente a Lei Áurea (1888), uma população de libertos que partiu das fazendas em Minas Gerais e do Vale do Paraíba fluminense desembarca também no Rio de Janeiro, ocupando notadamente áreas que algum tempo depois serão denominadas de Zona Norte da cidade do Rio (particularmente, as terras do boiadeiro Lourenço Madureira).

Por fim, uma última migração ocorre com o fim da Guerra de Canudos, na Bahia, e a promessa não cumprida pelo governo da República em presentear os soldados com terras na então capital federal. A chegada desse contingente de militares e suas respectivas famílias ameaça a ordem urbana e eles são induzidos a ocuparem o morro atrás da Estrada de Ferro Central do Brasil. Como na região de Canudos existia um terreno coberto de uma planta do sertão denominada FAVELA, a região na cidade do Rio passou a se chamar MORRO DA FAVELA OU MORRO DA PROVIDÊNCIA (pela providência tomada pelos soldados).

Uma última parte de militares ocupou terrenos abandonados próximos a antiga residência da Família Imperial Brasileira, na Quinta da Boa Vista, que em princípio pouco recebeu interesse dos republicanos após o ano de 1889 (no golpe militar que pôs fim a monarquia no Brasil). Nos primeiros anos do século XX, entendeu-se que a região deveria receber algum valor histórico e esses soldados foram expulsos de lá. Sem ter alternativa, aceitaram ocupar um loteamento vendido pela viúva do Visconde de Niterói em um morro doado a seu esposo pelo próprio Imperador D Pedro II. Como lá fora instalado o primeiro telégrafo aéreo, chamou-se Morro do Telégrafo. Tempos depois na base do morro foi construída uma fábrica de Chapéus denominada Chapéus Mangueira, que acabou por denominar a maior parte da região.

É nesse cenário que pouco tempo depois irá surgir o samba carioca. Até nosso próximo episódio!

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Os Cenários Musicais no Rio de Janeiro | Parte II

por Antonio Marcelo Jackson




Contemporâneo ao lundu, o choro e o maxixe, na mesma segunda metade do século XIX surge o que foi denominado de tango brasileiro. Conforme o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, suas origens podem ser encontradas na habanera, trazida para o Brasil por companhias de teatro, e que aqui se somaram a elementos da polca e do lundu.

Para muitos, inclusive, há uma enorme proximidade entre o tango brasileiro, o choro e o maxixe. Contudo, se levarmos em consideração um de seus principais compositores, Ernesto Nazareth, a diferença residia não apenas no caráter ligeiro das demais em relação ao tango, assim como também, porque este possuía modulações muito pouco coreográficas, ao contrário do maxixe, por exemplo.
De qualquer modo, o primeiro registro que se tem notícia de uma música denominada de tango brasileiro chama-se “Olhos Matadores”, de autoria do compositor Henrique Alves de Mesquita no ano de 1871.

Todavia, foi na década de 1880 que conquistou sucesso com as obras de Nazareth e em parte também de Chiquinha Gonzaga.

Dito isto, vamos ouvir um tango brasileiro. A composição é a conhecidíssima “Odeon”, de Ernesto Nazareth, na interpretação de Dario Ronchi. Um tango na verdade.

Concomitantemente ao sucesso que os tangos, choros e maxixes faziam no Rio de Janeiro daquele final do século XIX, principalmente no teatro e nas casas de dança, fora desse espaço, nas ruas, as festas também ocorriam e tinham enorme popularidade. Notadamente as festas de carnaval, ou melhor, o entrudo, possuía desde o início dos oitocentos, presença marcante nas comemorações de Momo.

O entrudo, que se fazia presente desde o início do século XIX e que tratarei em outro episódio, possuía a festa sem ter necessariamente ter uma música que fosse sua principal característica. De certo modo, isso se vinculava ao princípio de que nesta comemoração não havia um ordenamento qualquer ou um desfile: o que existia era uma turba que se aglomerava e assustava os transeuntes quando o carnaval chegava.

Em parte, as coisas começaram a mudar quando um baiano chamado Hilário Jovino Ferreira, morador do Morro da Conceição, região portuária do Rio de Janeiro, fundou um rancho de folia de reis denominado Reis de Ouro após romper com o grupo que adotara na sua chegada ao Rio, em 1872, e que, por razões diversas, entendeu por bem realizar o desfile não no dia 6 de janeiro (Dia de Reis), mas sim, no período do carnaval.

Essa alteração deu ao carnaval carioca algo completamente novo, a saber, um desfile de um grupo de pessoas com estandartes e outros adereços.

Com o passar do tempo, essas comemorações e desfiles que eram embalados com por hinos, quadrinhas, óperas, cantigas de roda e, de acordo com os pesquisadores do site Acervo Digital Chiquinha Gonzaga, até mesmo marcha fúnebre foi tocada, percebeu-se a necessidade de algo que servisse apropriadamente para tal.

Assim, em fevereiro de 1899 no bairro do Andaraí, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde residia, a maestrina oi incumbida pelo cordão Rosa de Ouro que fizesse uma canção para seu desfile.

Em poucos dias ela apresentava ao grupo não apenas uma canção para o rancho, mas uma canção com um ritmo devidamente adaptado para um desfile. O curioso é que a compositora apresentou a música ao cordão sem grandes pretensões; sequer preocupou-se em dar um nome de imediato àquele ritmo que criara e nem mesmo buscou com o tempo registrar de forma acabada, completa, sua música, deixando que inúmeras pessoas, após 1902 com o surgimento do disco no Brasil, gravassem sua obra.

A música em questão é, nada mais, nada menos, que a primeira música de carnaval. De Chiquinha Gonzaga, a marchinha “Ó Abre Alas”, aqui interpretada por Linda e Dircinha Batista, a primeira gravação na íntegra da música, em 1971.

Juntamente com os ritmos que surgiam no Rio de Janeiro no século XIX e princípios do século XX, outras formas musicais também aportavam pelas terras cariocas. Evidentemente, não eram obras que foram criadas na cidade a partir das interações sociais que por lá ocorriam; mas, eram ritmos que enorme sucesso faziam na capital e que de algum modo influenciaram também os modelos já existentes ou os compositores cariocas.

Um desses ritmos bem populares era a embolada. De acordo com os pesquisadores Mário Souto Maior e Rúbia Lóssio, a embolada é uma forma musical de compasso binário e que possui melodia declamada em intervalos curtos, possuindo um refrão que é repetido pelo grupo e inúmeras outras estrofes com a característica de ter os chamados versos de “trava-língua”, ou seja, com jogos de palavras que dificultam e desafiam a capacidade do cantador.

A embolada fez tanto sucesso no Rio que teve em inúmeros compositores conhecidos futuramente como sambistas, como autores de emboladas e como registro apresento a composição de um jovem, que na época possuía 19 anos, chamada “Minha Viola”; seu autor: Noel Rosa e aqui na interpretação de Noel e do Bando dos Tangarás.

Dito isto, fico por aqui. Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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Os Cenários Musicais no Rio de Janeiro | Parte I


por Antonio Marcelo Jackson





Capital do Vice-Reinado a contar de 1763, capital do Império e capital da República até 1960, é natural que a cidade do Rio de Janeiro aglutinasse não apenas um conjunto de interesses políticos e econômicos, mas também, fosse um polo de atração de inúmeros migrantes do país.

Conforme citado em outro episódio, para além da presença de inúmeros grupos sociais já no Rio instalados, há uma migração baiana para o Rio que será determinante para a formação da cultura carioca e, consequentemente, do samba. Mas, vamos pelo começo. De acordo com os estudos de Mozart de Araújo, o primeiro ritmo musical que é identificado nos documentos históricos é o lundu. Considerado como mistura de danças portuguesas, espanholas e bantus, há registros a contar de 1780,
citações nas Cartas Chilenas, Tomás Antônio Gonzaga, e notadamente na obra do cancioneiro brasileiro e que muito sucesso fez em Portugal, Domingos Caldas Barbosa.

Para muitos uma dança lasciva, foi marcante no século XIX e, ainda que tenha deixado a cena musical, registrou definitivamente a música no Brasil em virtude de sua cadência sincopada. Vamos ouvir um lundu recolhido por Mário de Andrade em suas pesquisas no início do século XX.

Como consequência das transformações promovidas no meio urbano, surge na segunda metade do século um novo ritmo musical. Síntese do lundu (de origem bantu) com a polca (de matriz europeia e que fora introduzida no Brasil com a chegada da Família real Portuguesa em 1808), e utilizando-se de instrumentos musicais embrionariamente do Velho Continente, mas tocados de uma forma tipicamente brasileira, o choro ganha espaço num ainda pequeno segmento da sociedade formado por funcionários públicos, músicos militares e pequenos comerciantes que poderiam, sem um rigor acadêmico, serem chamados de baixa classe média. Com isso, rapidamente transforma-se na música de bairros como Andaraí, Catete e nas vilas do Centro do Rio de Janeiro.

Outrossim, para pesquisadores como José Ramos Tinhorão, o nome choro vem efetivamente do verbo chorar, visto que, a maneira pela qual as composições originais se apresentavam mais parecia um verdadeiro lamento, numa espécie de melancolia que se apresenta na forma musical.

Presente até os dias atuais, o choro teve e tem representante de enorme quilate na música brasileira que vão desde seu compositor embrionariamente marcante, Joaquim Callado, passando pelo gênio de Pixinguinha e Jacob do Bandolim, chegando a Waldir Azevedo e Altamiro Carrilho. Vamos ouvir uma das obras mais brilhantes de Pixinguinha com a execução do próprio: o choro “Urubu”.

Se o ritmo do lundu já provocara alvoroço na aparentemente comportada sociedade carioca do século XIX, escândalo sem precedentes virá com o maxixe. Segundo o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, o maxixe surge como dança na década de 1870 e é fruto da reunião do lundu, polca, habaneira e tango, e ganha esse nome porque ao surgir na região da Pequena África é imediatamente vinculado às classes sociais mais baixas da sociedade carioca.

Pelo que se tem notícia, seu primeiro registro foi em 1883 no espetáculo “Ai, Caradura”, do ator Francisco Correia Vasques e atingiu enorme sucesso a partir da revista musical “República”, de Arthur Azevedo.

Em pouco tempo transformou-se no ritmo musical por excelência dos cabarés e prostíbulos, sendo adorado e odiado por boa parte da sociedade e, principalmente, pelas elites.

Como era comum as turnês de companhias de teatro europeias ao Rio de Janeiro, assim como também, de artistas brasileiros na Europa, não levou muito tempo para que o maxixe se transformasse num sucesso internacional, inclusive.

Há uma conhecida história envolvendo o presidente Hermes da Fonseca e Rui Barbosa. Viúvo, Hermes da Fonseca encantara-se pela jovem Nair de Tefé que, para assombro da época, não apenas fugia do estereótipo da mulher submissa, como eram conhecidas suas caricaturas nos jornais e magazines da época. Festeira, convencia o velho Marechal a promover festas nos salões do palácio do Catete e em uma das ocasiões a notória compositora e musicista Chiquinha Gonzaga apresentou um maxixe. No dia seguinte, Rui Barbosa praticamente pediu a queda do governante por aquilo que considerava um escândalo. Sem dúvida, coisas da época. Dito isto, vamos ouvir a música que gerou esse escândalo, o Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga, interpretado pela própria.

Mas, é claro que a cidade do Rio de Janeiro ainda comportava outros ritmos musicais.

Mas, isso para outro episódio de NO TEMPO DO SAMBA.

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As Matrizes Africanas do Samba | Parte II

por Antonio Marcelo Jackson



Da mesma forma que o congado e o jongo, outro ritmo claramente vinculado aos bantos é o chamado samba de bumbo, muito presente no interior do estado de São Paulo, e originalmente denominado por Mário de Andrade como “samba rural paulista”, ou ainda “samba lenço”, pelo pesquisador Marcos Ayala.

Em linhas gerais pode-se dizer que o samba de bumbo surge na virada do século XVIII para o século XIX nas fazendas de café que se organizavam no interior da então capitania de São Paulo e possui essa denominação em virtude de utilizar a zabumba ou bumbo na marcação de seu ritmo, conforme chama a atenção a pesquisadora Fernanda de Freitas Dias.

Diga-se de passagem, se levarmos em consideração os aspectos étnicos e musicais, lembrando que os ritmos africanos se caracterizam fundamentalmente pela marcação dos sons graves fazendo o solo e os sons agudos somente na marcação, o samba de bumbo está diretamente vinculado a cultura banto - talvez até mesmo um pouco mais que o jongo.

Para este caso, canto e dança se realizam a partir de uma pergunta lançada na roda pelo “dono ou dona do samba”, a pessoa que inicia a cantoria, para em seguida as mulheres(de uma forma geral) apresentarem a resposta, e assim sucessivamente.

Enquanto dança e canto dramáticos, o samba de bumbo mantém a mesma estética do jongo, numa roda, apenas acrescentando o movimento de vai-e- vem entre o “dono do samba” e as mulheres que a cada afirmação e resposta um se dirige ao outro. Nesse sentido, percebe-se de maneira nítida que é um canto de festa, não necessariamente religiosa.

Vamos ouvir um samba de bumbo com o registro do grupo Embaixada do Samba Paulistano.

Paralelamente a ocupação banto na atual região Sudeste do Brasil, no Nordeste temos além deste grupo a presença também marcante dos hauçás e, a contar do século XIX, dos iorubas.

Os hauças, conforme já citamos em episódio anterior, era uma sociedade islamizada e que habitava os territórios noroeste da África. Sendo majoritários em Pernambuco, marcam tremendamente a cultura local nos aspectos alimentares e na música, cuja característica mourisca se faz presente até os dias atuais no uso não apenas da escala musical, mas também, da entonação que se dá no ato de cantar. A figura dos cantadores nordestinos e o ponteio que fazem na viola demonstram claramente um DNA islâmico.

Na Bahia, as comunidades hauças e bantos (em minoria nesse caso) terão a companhia maciça dos iorubas nos primeiras décadas dos oitocentos. Social e politicamente organizados há alguns séculos, as sociedades iorubas perderam o controle de seu território na África no século XIX em virtude de uma sucessão de guerras que duraram mais de duzentos anos – daí terem sido os últimos a fazerem parte do lamentável rol das comunidades africanas traficadas pelos portugueses.

Ingressando na Bahia, encontraram o território dominado pelos hauças e num primeiro momento chegou mesma a existir um conflito entre os grupos, visto que, mesmo no continente africano, havia o entendimento por parte dos iorubas de que os hauças eram como que “traidores”, em virtude de terem adotado a religião e parte da cultura islâmica, conforme nos chama a atenção Nei Lopes.

João José Reis, em suas pesquisas, informa que o número de iorubas era tão majoritário até o fim do tráfico negreiro (que ocorre oficialmente em 1850) que em poucas décadas passou-se a ter o entendimento na Bahia de que a cultura ioruba era a que sintetizava os valores da África no Brasil – incluindo evidentemente sua religiosidade, seus orixás. É na reunião de valores hauças com valores iorubas que pouco a pouco surge na província da Bahia uma nova forma musical que seria denominada de samba de roda ou samba do recôncavo.

Originalmente vinculado a festividades africanas em sincretismo com elementos católicos – notadamente a festa de Cosme e Damião, em setembro -, paulatinamente foi se expandindo para outras reuniões não necessariamente religiosas até se inserir na cultura popular como um todo.

Iniciado com uma roda onde, um a um, cada componente irá dançar no centro, com os demais apenas batendo palmas e mantendo o ritmo e a cantoria, o dançarino é substituído quando escolhe um dos membros do círculo e com uma umbigada (“semba”, na língua banto) indica que é o próximo a dançar.

Vamos ouvir um trecho de um samba do recôncavo numa gravação da FUNARTE de 1994.

As forma rítmicas apresentadas pelo samba do recôncavo demonstram um caráter sincrético entre elementos bantos, hauças e iorubas, configurando, sem dúvida, o escopo inicial do que viria futuramente.

Todavia, foram ações políticas que produziram uma grande transformação na cultura brasileira a partir dessa matriz africana.

Primeiro, com a Revolta dos Malês (os hauças), em Salvador no ano de 1835. Deixando a cidade em polvorosa com o levante, os escravos islamizados passaram a ser indesejados no território baiano a tal ponto que algumas leis provinciais determinavam que ou bem retornariam à África ou seguiriam para qualquer outro lugar – e uma parte de negros forros, ou seja, escravos libertos, se dirigiu ao Rio de Janeiro.

Já no quarto final da segunda metade do século XIX com o fim da escravidão, outro enorme contingente de negros migrou para a capital do Império.

O resultado é que a mistura que já se processara em Salvador, ganhou cores mais contundentes ao chegar no Rio de Janeiro e toda sua cultura bantu mais do que cristalizada.

Será na sede do Império e posteriormente da República que diversos valores culturais irão se mesclar e criar outros ritmos musicais. Mas aí é uma outra história. Fica para outro episódio de NO TEMPO DO SAMBA.

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As Matrizes Africanas do Samba | Parte I

por Antonio Marcelo Jackson


Quando falamos de samba é impossível não falarmos da África, visto que, todas as matrizes rítmicas do samba têm origem no continente africano. Da mesma forma, para entendermos essas diversas origens, é necessário lembrar que a África, assim como todos os demais continentes, não possui uma única sociedade, um único grupo cultural.

Para o nosso caso específico, é de fundamental importância termos a ciência dos três grandes grupos que, por força da escravidão e do tráfico negreiro, chegam ao Brasil ao longo dos séculos: os bantos, que reúnem diversos grupos sob o mesmo elemento linguístico e que habitam tradicionalmente as regiões dos atuais Angola e Moçambique, os iorubas, da região do Golfo da Guiné (na atual Nigéria) e os hauças, povo islamizado habitando também parte do Golfo da Guiné e regiões noroeste e norte da África.

A escravidão organizada pelos portugueses tem seu início em 1534 com a ocupação dos litorais do que hoje são os estados de Pernambuco e São Paulo. Os hauças foram levados principalmente para Pernambuco, os bantos foram traficados para São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e uma parte menor para Bahia e Pernambuco, e os iorubas (que somente foram trazidos na primeira metade do século XIX) foram fundamentalmente para a Bahia.

Essa distribuição somente aconteceu em virtude da facilidade permitida pelas correntes do Oceano Atlântico. Apenas como curiosidade, há a corrente do Atlântico Norte que gira ao longo de seis meses no sentido horário e inverte no restante do período, ou seja, no sentido anti-horário, e a corrente do Atlântico Sul que funciona da mesma forma, sendo que numa lógica invertida (enquanto no Atlântico Norte apresenta um sentido horário, no Atlântico Sul observa-se sentido anti-horário, por exemplo). Assim, era mais fácil trazer hauças e futuramente iorubas para a região Nordeste do Brasil e concomitantemente distribuir bantos por quase todo o território.

Para uma clara distinção da religiosidade de cada um dos grupos, conforme chamam a atenção os estudos de Alberto Costa e Silva e Nei Lopes, a matriz banto, por exemplo, reside na ideia de um espírito ancestral (Hamba, representados por árvores, entre outros) e que possui uma cosmogonia absolutamente rica; os hauças, islamizados, reuniam já na origem tanto elementos árabes quanto itens embrionários de sua cultura; por fim, os iorubas, também de rica e extensa cosmogonia e que têm sua fé diretamente vinculada Se para os africanos essas diversidade era gigantesca, o mesmo se repetia para os grupos indígenas brasileiros. Tupi-guaranis, em quase todo o litoral, Gês, caribes e arwakes nas regiões central e norte, faziam do caldeirão cultural que se formava uma experiência ímpar, para o bem e para o mal.

Para a manutenção da escravidão no território, escravidão esta que tanto utilizou indígenas nos primeiros anos e depois lançou mão das sociedades africanas, uma das saídas encontradas pelos portugueses foi a imposição de um sincretismo religioso onde era possível manter a fé original, desde que, aceitassem os símbolos cristãos. Assim, foi possível surgir em todo o território brasileiro inúmeras igrejas devotadas a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, cuja ordem religiosa era em geral ligada aos Quanto aos hauças o processo de sincretismo foi até mais simples, visto que, nos fundamentos do islamismo aparecem inúmeras personagens ligadas ao cristianismo – como o caso do próprio Jesus Cristo que, segundo a fé muçulmana, é um dos que anunciam a vinda de Maomé.

Um dos primeiros resultados desse sincretismo foi o surgimento originalmente de uma dança e, depois, de um ritmo musical, vinculado à festa de Reis, e denominado “congado”: presente em cortejos principalmente em Pernambuco e Minas Gerais, apresenta-se primeiro como dança dramática e reunindo elementos cristãos (como as pelejas medievais das cruzadas) com crenças que remetem a Angola; posteriormente, transformou-se em ritmo musical que até os dias atuais se faz presente em parte significativa de nosso território. Vamos ouvir um trecho do Congado de Santa Efigênia, em Ouro Preto-MG, em um registro de Laura Alice Souza da Silva.

Paralelamente ao Congado, de cunho exclusivamente religioso, aparece o Jongo. Ainda que também possua uma origem banto, o jongo vincula-se tanto ao princípio de um canto de trabalho, quanto a uma experiência religiosa. De acordo com a pesquisa realizada por Carlos Gregório dos Santos Gianelli, o canto de trabalho destina-se a ludibriar o esforço empregado em uma atividade qualquer, atenuando a pesada rotina de trabalhadores braçais, das lavouras, entre outras funções.

Pode-se dizer que o jongo, enquanto ritmo, foi uma das formas apresentadas nos diversos meios sociais para um canto de trabalho, elemento comum em diversas outras sociedades como, por exemplo, a função embrionária que o blues possuiu na sociedade negra norte-americana com o mesmo objetivo do jongo.

Assim, seja como forma de socialização e manutenção dos valores culturais, conforme atesta a pesquisa realizada pela equipe da ONG Jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro, seja por assumir caráter religioso, o jongo transformou-se em referência de comunidades embrionariamente quilombolas ou que desejavam manter seus valores em outras paragens.

Dessa forma, ele é encontrado no Quilombo de São José da Serra, no município de Valença-RJ, existe de maneira marcante no Morro da Serrinha, em Madureira, no Rio de Janeiro, e pode ser encontrado em alguns municípios paulistas – todas as regiões de presença notadamente banto.

Vamos ouvir um Ponto de Jongo na interpretação magnífica de Clementina de Jesus: Evidentemente, as matrizes africanas ainda possuem outras referências. Mas, vamos deixar para um outro episódio. Até o nosso próximo NO TEMPO DO SAMBA.

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